segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura (Resenha)

APPIAH, Kuame Anthony


O Filósosfo Kwame Anthony Appiah nasceu na Inglaterra em 1954 e adotou também a nacionalidade americana onde vive e trabalha. Filho de uma aristocrata inglesa e de um africano ashanti, de Gana, Appiah foi criado em uma educação formal européia e dentro de uma família africana cristã, mas passou a maior parte da infância e da juventude em Kumasi, capital do povo de seu pai. Tem parentes em dezenas de países, reunindo em sua família os falares de oito línguas e três grandes religiões monoteístas.
O livro “Na casa de meu pai”, foi publicado pela primeira vez em 1993 e teve sua segunda edição lançada em 2007.

Neste livro, “Na casa de meu pai”, Kwame Appiah propõe em nove capítulos que se interligam e dialogam, a partir de questões interdisciplinares, uma abordagem ampla das teorias e problemas das identidades raciais, étnicas, pan-africanas e nacionais, e de como esses conceitos conduzem o pensamento dos estudiosos da cultura e da sociedade sobre a África. Já no prefácio fica claro que, além da interdisciplinaridade , alguns elementos autobiográficos, com alusão ao seu pai, vão nortear os questionamentos do autor acerca da idéia da existência de raças humanas e suas reflexões sobre os perigos e as limitações impostas à diversidade cultural do continente africano a partir da criação de uma identidade africana.
Appiah centra-se no conceito de raça como cerne do pensamento pan-africanista idealizado por pensadores afro-americanos, a exemplo de Alexander Crummel. Influenciado, segundo o filósofo, pelo pensamento racialista do Século XIX, baseado no racismo intrínseco e na experiência africana no novo mundo, o Pan-africanismo compreende a África como culturalmente homogênea no sentido da existência de uma forma de pensamento e conteúdo característicamente africano. A paritr da concepção de que certo grupo é objetável, base do racismo intrínseco, o Pan-africanismo alicersa-se erroneamente ignorando as diferenças dos passados pré-coloniais, bem como as experiências coloniais dos Africanos.
Embora Crummel seja considerado o precussor do pensamento pan-africanista, é em cima das bases intelectuais e práticas lançadas por W.E.B. Du Bois, que Appiah segue sua fundamentação teórica neste livro, discutindo a questão de raça, que para ele é errônea mesmo dentro da concepção científica, devido a pouca variabilidade gênica. Para o filósofo, mesmo que Du Bois tenha tentado negar a constituição de raças através do cientificismo do Séc. XIX, a definição de raça biológica negada por ele estava implícita na noção de “sangue comum”, adotada nessa definição, remetendo ao sentimento familiar dado à raça, por Crummel. Embora tentando reagir ao preconceito a que ele estava sujeito, Du Bois acabou por reforçar as raças na sua articulação intelectual, mesmo valorizando-as no sentido da contribuição que cada uma teria para o mundo, incluindo-se aí a raça negra.
O nacionalismo e a relação entre nação, literatura e raça para analisar como a identidade africana está representada é outro ponto a servir de reflexão para Appiah nesta obra. O autor coloca que no sentido de garantir a proteção contra a dominação do imperialismo europeu e o fortalecimento de uma identidade, os autores africanos construíram uma literatura de característica nacionalista, negando assim a idéia de ser universal. Appiah tenta assim, tomando como base o escritor Nigeriano Wole Soyinka, mostrar que a postura assumida pela literatura , no sentido de individualizar a cultura africana, tendeu como resultado, a minimizar e simplificar a diversidade cultural do continente africano, bem como ao contrapor a dominação cultural do ocidente, acabou por reforça-la, uma vez que essa realização se dá da mesma maneira em que os critérios ocidentais foram estruturados.
Appiah discute ainda sobre a moderna filosofia africana e a religião considerada como “tradicional” para pensar uma proposta de modernização para a África que pode caminhar, segundo ele, não exatamente entre o “provincianismo” e a “universalidade”, embora se faça necessário essa reflexão, mas no sentido de se pensar os problemas africanos distantes de uma idéia esteriotipada das suas diferenças, e sim a partir da situação especial da qual esses problemas emergem, sendo encarados como problemas humanos e não como problemas africanos.
O mercado artístico e literário dão a base da análise que o autor vai trazer, continuando suas reflexões no livro, sobre o sentido do Estado Africano e de identidade. O sentido de Estado e das nacionalidades vai se constituir a partir da importância que assume o papel da mercadologização, em que a influência da cultura ocidental na África tem sido crucial no momento em que a arte vira mercadoria. Para melhor contextualizar esse aspecto, uma exposição artística é tomada como exemplo, em que a mercadologização é evidente no sentido da importância que é dada ao comprador criado numa sociedade moderna e capaz de falar sobre arte africana, e o lugar que é reservado ao artista africano nesse processo. Com esse exemplo Appiah tenta desmistificar a idéia de que um artista africano só poderia falar de arte africana se conhecesse outras formas de arte e se não fosse influenciado pela sua própria visão estética, noção essa que facilmente se desfaz nas explicações de dele quando nos coloca dois problemas contidos aí. O primeiro versa sobre o fato de que o reconhecimento do artista africano como pertencente a uma determinada nacionalidade é dado a partir do instante em que ele sabe que não pertence a outro grupo, e isso só ocorre na medida em que ele pode diferenciar diante do conhecimento sobre o outro, suas tradições e culturas. O segundo problema versa justamente sobre a universalidade da visão local, quando sabemos que a visão de mundo é culturalmente definida. Com tudo isso e diante de parte da sociedade africana que se tornou consumista nos moldes ocidentais, Appiah destaca que a modernização das sociedades africanas está ocorrendo sem que se perca de vista seus aspectos culturais, uma vez que muitos se recusam a ver-se como o outro.
Estados alterados, o oitavo capítulo desse livro, traz a análise de questões sobre a formação dos Estados Africanos pós-coloniais levando-se em conta na compreensão do seu sentido, a reflexão sobre o passado pré-colonial, o próprio colonialismo e a estruturação desses Estados independentes. Appiah ressalta a diferença na formação dos Estados Nacionais na Europa e a formação dos Estados na África, e como o processo de colonização e descolonização da África resultou em Estados à procura de uma Nação, e que a estrutura colonial herdada pelos africanos, bem como a não adaptação das elites locais ao poder centralizador dos Estados Unidos, vão se constituir em problemas de um modelo que se apresentou inadequado às estruturas sociais da África. O autor, mesmo dando a idéia de fase de transição, sugere que a África poderá tornar-se um território fragmentado de muitas “identidades” e pouca coesão se não houver a superação das estruturas coloniais e diferenças étnicas, orientada por um pensamento racional comum.
Advertindo para o perigo existente ao se formar as identidades baseadas na questão de raça, Appiah vai encerrar seu livro trazendo nesse nono e último capítulo, “Identidades africanas”, o sentido dessa sua afirmação e advertência, uma vez que, segundo ele,não dá para ignorarmos as falsidades e os desajustes que a formação das identidades baseadas em tais concepções podem pressupor e proporcionar e propõe que o discurso das diferenças “raciais” e “tribais” deva ser desarticulado, na medida em que essas diferenças só interessam aos que com elas lucram de alguma forma. Apesar disso, ele coloca que, mesmo que os pressupostos raciais, de história comum e metafísica não devam pautar uma identidade africana e que eles não impõem uma identidade, não devemos descartá-los. O autor nos mostra ainda nesse capítulo que as identidades são construídas e históricas, complexas e múltiplas, de valor relativo, e que, por se tratar de algo relativo, deve se argumentar contra e a favor, mas considerando uma a uma, caso a caso. Nesse livro, com a revisão dos conceitos em que são assim construídas as identidades afloradas hoje no continente africano, Appiah se posiciona não contra as tradições ou as identidades, mas questionando mesmo a construção dessas identidades e chamando a atenção das conseqüências perigosas que essa construção pode trazer aos povos da África, a exemplo dos conflitos étnico-regionais e a negação de uma unidade que dê conta da heterogeneidade africana e da suplantação das diferenças, e que não ao contrário venha reforçar o acirramento das mesmas, atendendo a objetivos muito particulares.


By Martha Sales Costa

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica

Cunha, Manuela Carneiro da. Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica. Conferência do mês do Instituto de Estudos Avançados da USP em 17 de junho de 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141999000200008&script=sci_arttext

Resenhado por Aline Ferreira da Silva

Abordando um conjunto de questões que envolvem reflexões sobre público/privado, populações locais/estados nacionais, países do norte/países do sul, ciência tradicional/ciência ocidental, direitos tradicionais/direitos universais, o texto Populações Tradicionais e a Convenção da Diversidade Biológica traz à tona um debate que tem como foco analítico principal refletir sobre o “lugar” do “saber local” frente aos debates atuais em torno da diversidade biológica e do desenvolvimento científico. Resultado de uma conferência apresentada ao Instituto de Estudos Avançados da USP, o texto compõe um dos principais temas de trabalho da Antropóloga e professora da Universidade de Chicago, Manuela Carneiro da Cunha, a qual vem desenvolvendo estudos e pesquisas nas áreas de etnicidade, povos tradicionais e questão racial.
O texto de Cunha (1998) inicia-se com uma breve descrição acerca do que foi a Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e de como foi a sua repercussão no Brasil. Caracterizada por reunir países de diversas partes do mundo para discutir sobre o uso sustentável da dos bens genéticos e biológicos, o evento é apresentado pela autora como sendo um instrumento do direito internacional que reúne organizações transnacionais, representantes do Estado, dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada no debate sobre o direito à conservação biológica. No centro reflexivo deste debate, alguns questionamentos principais se fazem recorrentes: É o direito biológico e genético um direito universal? Os recursos genéticos, biológicos e tradicionais devem ser tidos como um patrimônio da humanidade? Como garantir à coletividade humana que tenham o direito a todos os patrimônios biológicos e genéticos sem que isso implique na perda de direitos de algumas comunidades locais? Qual o limite entre apreender os bens genéticos e biológicos como bens privados, públicos, tradicionais ou modernos?
O pressuposto reflexivo que dá impulso ao desenvolvimento destas questões aparece diretamente ligado ao fato de que, nas últimas três décadas, dada a expansão dos estudos científicos ocidentais, em especial os biotecnológicos, tem havido uma forte disputa em torno de como os produtos biológicos devem ser apreendidos, se como bens públicos, e portanto livres para acesso de toda a humanidade, ou privados, neste caso, passariam a ser patenteados e pertencentes a grupos específicos de estudiosos, países e/ou empreendedores. O ponto problemático desta questão é que, por conta dos elevados ganhos científicos e econômicos que o domínio dos bens biológicos e genéticos tem trazido para a sociedade moderna, muitos países de elevado poder político-econômico têm incentivado os movimentos em prol da privatização destes bens, consectuando, inclusive, em leis que os asseguram o domínio de explorar determinados produtos, produtos estes que na grande maioria das vezes, pertencem a outros territórios, a outros povos, com outras culturas e formas de utilização daqueles bens. Fazendo uma breve comparação entre os países do Norte e os países do Sul, Cunha relata que, em 1975, dos 12 centros de megadiversidade existentes no mundo, 11 estavam situados no hemisfério Sul, sendo que, em termos de domínio de patentes, apenas 1,7% das mesmas pertencia a estes, e as demais, cerca de 98,3% aos países do Norte. Em outras palavras, embora os países em desenvolvimento concentrassem a maior parte da diversidade biológica do mundo, eram os países desenvolvidos quem mais tinha poder sobre estes.
Ao longo dos anos 1990, a crítica à chamada revolução tecnicista/verde e ao modelo de desenvolvimento calcado no desenvolvimentismo economicista e individualista trouxe para o debate público internacional o questionamento sobre a consequência da implantação destes modelos para as comunidades locais. Com isso, se antes as mesmas eram apreendidas como comunidades cujo saber era tido como arcaico, incompatível com o progresso que se aspirava, agora, frente aos novos debates que insurgem, os conhecimentos e saberes destas passam a ser apreendidos como “tendo um valor” incomensurável para o desenvolvimento e progresso da sociedade moderno-contemporânea. E é justamente neste ponto que permeiam alguns problemas: Quais valores são estes que são atribuídos a estes saberes? Como eles são vistos e apreendidos pelas sociedades globais? Quais “utilidades” são dadas a estes saberes? De acordo com Cunha (1998), nos últimos anos o saber local assumiu o “epicentro” dos debates importantes em termos de Estados Nacionais e organizações internacionais. A tal saber, passam a ser atribuídos valores culturais, ambientais, identitários, sociais e econômicos muito grandes, já que, visto como uma forma diferente de se fazer ciência, a este correlaciona-se a possibilidade de construção de um modelo de se fazer ciência mais compatível com os ideais de “sustentabilidade” galgados pelas comunidades internacionais.
Assim, tido como “uma ciência viva, que experimenta, inova, pesquisa” (Cunha, 1998: 159), o saber local passa a ser associado como uma forma de conhecimento que tem domínio sobre as diversidades biológicas, as variedade genética; que tem domínio sobre as possibilidades de articulações, e mais que isso, que tem em seus territórios características naturais preservadas das mudanças e agressões impostas pelas tecnologias e manipulações científicas. Conforme Cunha (1998:159) “são essas condições essenciais de produção do saber local que as propostas de direitos intelectuais coletivos querem preservar”, principalmente no que se refere à (1) variedade de plantas, (2) o saber sobre elas, (3) e a divisão que as comunidades locais fazem diante delas, no processo de classificação das mesmas.
Abordadas estas questões, Cunha (1998) segue fazendo uma série de indagações acerca de como as organizações internacionais podem fazer para se apoderar destes conhecimentos, já que, além do valor científico que lhes é atribuído, existe por trás da tentativa de tornar este conhecimento público, fortes interesses comerciais e/ou posicionamento diante do mundo. A questão agora é saber, até que ponto (ou mesmo quando) os saberes locais vão poder gozar de suas particularidades e serem saberes locais e não globais? Como funcionará (ou funciona) a circulação destes conhecimentos e quais as implicações que incidirão sobre as comunidades? Dentre as várias possibilidades de conseqências que estes questionamentos podem gerar, o fato é que, para Cunha (1998), o desafio é saber mediar os interesses entre os diversos agentes envolvidos, procurando estreitar os laços dialógicos entre Estados Nacionais, organizações internacionais e comunidades locais.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Praça Do Martim Moniz: Etnografando Lógicas Socioculturais de Inscrição da Praça No Mapa Social de Lisboa

Resenha de artigo de Marluci Menezes

Marluci Menezes possui doutoramento em Antropologia, especialidade em Antropologia Cultural e Social pela Universidade Nova de Lisboa (2002), Mestrado em Antropologia, especialidade em Antropologia Cultural e Social pela Universidade Nova de Lisboa (1996), e é atualmente chefe do Núcleo de Ecologia Social do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, o LNEC.
Considerando o espaço Publico Urbano como um “suporte” para contextos de interações através das quais as identidades sociais, práticas e imagens socioespaciais são afirmadas, e/ou, contestadas, a presente etnografia sobre as práticas de uso (apropriação) da Praça Martim Moniz, objetiva analisar os aspectos socioculturais, responsáveis, segundo Menezes, pela “inscrição da praça no mapa social e urbano de Lisboa” (p. 304). O lugar público é assim, na visão da autora, um quadro simbólico representativo da cidade como uma unidade espacial, cultural e social. Menezes, seguindo a proposta de uma etnografia de “de perto e de dentro” (p.303) de Magnani, parte da idéia que as práticas sociais são também responsáveis pela configuração e reconfiguração dos espaços, que não são simples resultados de políticas intervencionistas de controle por parte do estado e do poder econômico.
Na primeira parte do artigo “Antecedentes da praça”, a autora traça um apanhado histórico do território da Mouraria, área histórica de Lisboa destinada aos mouros após reconquista da cidade no século XII, onde é situada a Praça Martim Moniz. Visto como gueto ‘insalubre” e “mal-afamado”, lugar de “prostitutas” e “malandros” (p. 306), a região da Mouraria tornou-se, entre os anos de 1930 e 1960, foco de políticas intervencionistas (urbanismo civilizador ) legitimadas por uma proposta de higienização e embelezamento destinada a transforma aquela zona da cidade marginalizada em um bairro moderno, modificando suas “dinâmicas sociais, culturais e urbanas” (p. 306) (gentrification?). Apesar desse grande Plano de Revitalização do bairro, o largo do Martim Moniz surge no cenário urbano de Lisboa apenas como praça e exemplo da boa convivência de diversos grupos étnicos (africanos, chineses, indianos e ciganos), marca de uma sociedade multicultural bem sucedido: “Portugal é um país multicultural” (p. 317).
É na segunda parte, “A etnografia da Praça do Martim Moniz”, onde começa o passeio etnográfico praticado pela autora durante três anos, como também o início da discussão que esta resenha se aterá, a ocupação (apropriação, uso) de Pedaços da praça por diferentes grupos étnicos. Africanos e indianos, num primeiro momento tinham como pedaço as esquinas circunvizinhas da praça, aglutinavam-se na extremidade norte da mesma (Por que? Tal localização facilitaria eventuais retiradas estratégicas, no caso de batida policial?), assim como os chineses. A recém inaugurada Martim Muniz passou rapidamente de pedaço de lazer dos moradores, para pedaço de imigrantes marginais, o lugar do outro, onde “não dá para se estar” (p.310). O “Cartão-Postal” (p. 310) que havia se tornado a Martim Muniz, via política de enobrecimento (revitalização), retomou rapidamente sua herança de “espaço onde havia perigo” (p.310).
Mais uma vez, em 1998, foi elaborado um plano de intervenção por parte do Estado. A Câmara municipal de Lisboa, numa tentativa de revitalizar economicamente a praça, estalou 44 quiosques destinados a venda de artigos religiosos, antiguidades e artesanato. Entretanto, o plano não deu certo. Ao invés de dar novos usos à praça, a distribuição desses quiosques obstruiu os trajetos ainda praticados pelos moradores, facilitando a prática de atividades ilegais: os quiosques e sanitários serviam de abrigo para toxidependentes e traficantes, assim como, para as gangues dos telemóveis, sobretudo imigrantes africanos, asiáticos e indianos que realizavam chamadas internacionais a preços duvidosos. Novamente o uso previsto é sobreposto ao contra-uso, ou seja, o negócio oficial ao qual foram destinados os quiosques entrava em bancarrota, e o ilegal, venda de drogas e chamadas telefônicas fraudulentas, prosperou rapidamente.
Vale à pena ressaltar que apesar dos vários contra-usos praticados na praça (venda e uso de drogas e chamadas ilegais), os comerciantes que ainda resistiam e moradores, em nota publicada em um periódico de 1999, apenas reclamavam da presença das gangues dos telemóveis, parecendo ignorar a prática da venda e uso de drogas, não citada na nota. Dessa maneira poderíamos dividir a localidade em dois grandes grupos, os imigrantes (africanos, indianos, asiáticos, brasileiros entre outros citados) e os nativos (portugueses moradores e vendedores da redondeza) em conflito na disputa pelo espaço. Divisão esta que se confirma ao analisarmos a localização e os proprietários dos três Snack-bars ainda existentes: no lado sul da praça ficava o snack-bars “Fava-rica”, sob direção de portugueses e tendo como clientela principal os turistas que vez ou outra, transitavam na praça a se refrescar em fontes existentes e tirar fotos; na outra ponta da praça, extremidade norte, os snack-bars “Quiosque Criola do Martim Moniz”, sob direção de africanos e clientela diversificada (indianos, africanos, ciganos) e outro controlado por Chineses, também com clientela diversificada. A autora ressalta ainda que, apesar da proximidade geográfica entre os dois quiosques e, dos grupos étnicos diversificados que compunha sua clientela, esses pedaços (snack-bars dos portugueses, africanos e chineses) configuravam “limites e fronteiras sociossimbólicas” (p. 314), ou seja, apesar da proximidade física, continuavam separados por fronteiras simbólicas.
Mais uma vez, por intervenção do Estado, além da retirada da maioria dos quiosques com intuito de dar maior circulação aos pedestres, e desabrigar os negócios ilegais (venda de droga e telefonia fraudulenta) foi estalado um circuito de vigilância eletrônica e contratados seguranças uniformizados, que transitavam diariamente na praça, outra tentativa de “domesticação do espaço” (p.312). No entanto, o clima de insegurança continuava, os pequenos furtos e as gangues dos telemóveis, apesar de em menor número, continuavam a compor o cotidiano da praça.
No sub-tópico, “Ritmos e comportamentos”, Menezes esboça o cotidiano da praça chegando a conclusão que a intensidade na frequencia e apropriação da Martim Moniz, coincide com o ritmo do comércio local, fim da manhã, ora do almoço e fim da tarde, a noite dois ( Fava-Rica e Quiosque Criola do Martim Moniz) os três quiosques ficavam abertos até por volta das 24h.
No tópico “As situações de protesto civil e de resistência”, demonstra como a praça vem se tornando emblemática no contexto de manifestações trabalhistas e de imigrantes, circunstância onde “pedaços”, “circuitos” e “trajetos” deixam de existir transformando o espaço, fragmentado em seu cotidiano, em um espaço de discussão a cerca dos problemas da desigualdade social e dos imigrantes ilegais. O que tem transformado a imagem da praça em espaço de luta e resistência por direitos civis. Daí o tópico “Entre uma geografia da resistência e uma etnografia da circunstância presente” voltado a demonstrar que “a par do controlo por parte do poder, existe uma geografia da resistência que se apropria da praça como um local de expressão civil e de oposição ao controlo estatal” (p. 319). Para tanto, propõe a recuperação das concepções de protesto-manifesto (apropriação do espaço por grupos marginais ou excluídos p. 319), protesto-latente (contestação do desenho e planejamento do espaço p. 320) e protesto-ritual (festas, carnavais, paradas e procissões p. 319) proposta por Low (2000b).
Concluo retomando a discussão proposta, mais não aprofundada por Menezes, a cerca das fronteiras sociosimbólicas. Ao delimitar os pedaços dos diversos grupos étnicos que compunha a paisagem social da Praça Martim Moniz, Marluci parece não considerar o fluxo existente de pessoas, idéias, valores, por essas fronteiras. Mas, o simples fato das gangues dos telemóveis, assim como, os snack-bars, terem uma clientela diversificada (africanos, indianos, portugueses, chineses entre outros) já não sugere um grau de interação, no mínimo econômica, entre esses grupos étnicos?

by Williams Souza Silva

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Resenha do livro Cultura de Consumo, de Featherstone

FEATHERSTONE, MIKE; SIMÕES, Julio Assis (Trad.). Cultura de consumo e pós modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995, capítulos I e II.

Mike Featherstone é professor de Sociologia e Comunicação pela Universidade de Nottingham Trent (Inglaterra) e editor do jornal Teoria, Cultura e Sociedade. É autor de vários livros que versam, principalmente, sobre os tópicos Globalização, Identidade, Pós- modernismo e Cultura de Consumo.
A respeito dos dois últimos temas mencionados, Featherstone (1995) escreveu uma de suas mais importantes obras intitulada Cultura de consumo e pós modernismo. Este livro organizado em nove capítulos (Moderno e pós moderno: definições e interpretações; Teorias da cultura de consumo; Por uma sociologia pós moderna; Mudança cultural e prática social; Estetização da vida cotidiana; Estilos de vida e cultura de consumo; Cultura de cidades e estilos de vida pós moderno; Cultura de consumo e desordem global; Cultura comum ou culturas comuns?) reúne ensaios, artigos e textos apresentados em conferências e seminários, escritos na década de 80, um período que segundo o autor marca o aumento do interesse de se teorizar a cultura, o que seria resultado da “onda” do pós-modernismo.
Seu livro não tem, contudo, a intenção de explicar o que é o pós- modernismo. Featherstone busca refletir a respeito dos motivos que levaram as ciências humanas de modo geral a se interessarem por tal assunto. Seu objetivo é entender como o pós- modernismo surgiu e como se transformou em uma imagem cultural tão influente e poderosa.
Nos capítulos que tratam sobre o pós- modernismo, o autor busca investigar como o sentido desse termo tem sido relacionado as mudanças culturais ocorridas nas experiências e práticas do cotidiano consideradas modernas. Também faz parte de sua proposta analisar os fenômenos associados ao uso dessa terminologia e apresentar questões a respeito da produção, transmissão e disseminação do conhecimento e da cultura.
Essa resenha dá atenção especial ao primeiro e segundo capítulos do livro. Neles, Featherstone apresenta os posicionamentos teóricos de autores das Ciências Sociais, no que se refere as definições do termo pós- moderno e as perspectivas vigentes a respeito da cultura de consumo. Tais capítulos situam a sua abordagem: entender as associações feitas entre cultura de consumo e pós- modernismo, traçadas por autores que trabalharam com ambos os temas, tais como Bell, Bauman e Baudrillard.
Segundo o próprio Featherstone seu interesse em pesquisar a cultura de consumo surgiu sob influência da escola de Frankfurt e da Teoria Critica, uma vez que suas conjeturas a respeito da indústria cultural davam atenção ao consumo e os processos de massificação cultural e não apenas aos modos de produção. Os escritos da Teoria Critica focalizavam o papel da mídia e da publicidade e os efeitos destas na formação de identidades e nas práticas do cotidiano.
Apesar de haverem muitas críticas a essa corrente de pensamento, sobretudo, por conta de sua perspectiva elitista, críticas estas que partiram principalmente de pós- modernistas, alguns pontos não chegaram a ser de fato superados. Featherstone está preocupado em entender a questão reflexiva que o estudo da cultura e do consumo apresenta: “como e por que escolhemos um quadro de referência e uma perspectiva de avaliação específicos? Como é que o estudo do consumo e da cultura – temas até recentemente designados como secundários, periféricos e femininos em oposição a centralidade atribuída a esfera de produção e a economia, mais masculinas – conquistou um lugar mais importante na análise das relações sociais e das representações culturais?” (FEATHERSTONE, 1995; pp.10)
Segundo o autor, compreender as relações negativas e positivas a respeito da cultura popular, de massa e de consumo e a relação desses posicionamentos e o pós- modernismo implica, antes de mais nada, em estar a par do que foi e tem sido escrito a respeito do mesmo (pós-modernismo). O termo moderno e suas derivações são definidos e interpretados no campo intelectual, acadêmico e artístico – música, artes, literatura, antropologia, sociologia, arquitetura, entre outros – de diferentes maneiras, que acabam se cruzando em algum momento. Reconhecendo a dificuldade de defini-los, o primeiro capítulo do livro sintetiza as idéias desenvolvidas por alguns autores dos campos mencionados, a respeito desse tema, o que é feito a partir das contraposições: modernidade/ pós- modernidade; modernização/ pós-modernização; modernismo/ pós- modernismo.
A palavra modernidade é comumente usada para indicar um conjunto especifico de características, refere-se a uma contraposição a ordem tradicional que segundo alguns autores da sociologia resultam em racionalização e diferenciação do mundo social. Enquanto que pós- modernidade é usada para indicar a transição de uma época para outra, interrupção da modernidade ou simplesmente uma mudança. No campo acadêmico e intelectual, segundo alguns críticos, representa uma estratégia para a modificação de antigas metodologias.
O modernismo, usado para abarcar as diferentes formas de cultura associadas ao processo de modernização, possui um sentido mais restrito, ligado em geral a estilos artísticos advindos da virada do século XIX. Tem como características básicas a reflexividade, autonomia, ênfase no sujeito desestruturado e desumanizado. O pós- modernismo é tomado, por sua vez, como o aprofundamento de uma tendência oposta ao modernismo, ou como uma lógica cultural.
Para a Sociologia, a modernização significa os efeitos do desenvolvimento econômico sobre as estruturas sociais e valores, ou uma etapa do desenvolvimento social em decorrência da industrialização. A pós- modernização aparece em alguns autores como uma ideologia e um conjunto de práticas que tem efeitos no espaço.
Após a exposição desse diferentes posicionamentos e interpretações Featherstone conclui que não existe um consenso a respeito do uso que se faz do termo pós-moderno e seus derivados. O que é certo é que seus significados que se misturam de maneira confusa, mas nos leva a pensar a respeito das mudanças ocorridas na cultura contemporânea com reflexo nos campos artístico, intelectual e acadêmico. Os debates atuais põem a cultura e as práticas cotidianas no centro das discussões e os pós- modernos são os que se interessam especialmente por essa discussão.
Na sequência o autor apresenta-nos três perspectivas da cultura de consumo. A primeira afirma que a cultura de consumo tem como premissa a expansão e produção de mercadorias que levam, conseqüentemente, ao acúmulo de cultura material. Segundo esse posicionamento a cultura depende das lógicas impostas pelo mercado.
Na segunda, as mercadorias são uma espécie de demarcadores das relações sociais. Aqui as formas de consumo constroem relações, ou seja, quando um produto é consumido de maneira semelhante tende a derrubar as fronteiras sociais, quando consumido de maneira diferente gera barreiras. Além disso, um mesmo produto trás dimensões simbólicas distintas, por exemplo, para uns o vinho serve apenas como bebida, para outros, terem uma garrafa específica na coleção é também uma maneira de consumir. Vários autores se mostram simpáticos a esse posicionamento. A terceira e última perspectiva apresenta o consumo como meio de satisfação de prazeres pessoais e realização de sonhos.
Featherstone encerra esse capítulo argumentando que o consumo não é apenas um derivado da produção e que por tal motivo, a sociologia deveria analisá-lo além da proposta herdada pela teoria da cultura de massas, que o coloca como algo negativo. Na cultura de consumo tanto persiste a economia de prestígio que classifica o status de seu portador, quanto há o uso imagens, signos e bens simbólicos que são geradores de sonhos e desejos.
Tomar o pós- modernismo como orientação serviu como uma maneira de demonstrar o lugar que este ocupa nas transformações que acontecem na esfera cultural. Featherstone acredita que independentemente do rumo histórico que este (o pós- modernismo) possa tomar os seus movimentos terão reflexos diretos na problematização das organizações culturais cotidianas.
By Daniela Moura Bezerra

quarta-feira, 3 de novembro de 2010