segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Potogee: ser português na Trinidad - Miguel Vale de Almeida

Uma breve navegação através das teias virtuais de significado da rede mundial pode informar melhor do que eu um pouco sobre a vida, a formação e as áreas de pesquisa do português Miguel de Matos Castanheira do Vale de Almeida. Posso adiantar que, na empreitada, vocês se depararão com uma sólida formação antropológica, aliada a um senso estético refinado e passagens pela vida política. Quem ainda não conhece sua página pessoal, não deixe de fazer uma visita (http://site.miguelvaledealmeida.net). É uma experiência bastante agradável.
No que concerne aos objetivos aqui encerrados, do vasto material atribuído ao autor, tive contato com um capítulo intitulado “Potogee: ser português na Trinidad”, presente no livro “Um mar da cor da terra” (Celta, Oeiras, 2000). Vamos ao ponto.
Para o autor, interessado na construção das ideias de raça e etnicidade em contextos pós-coloniais multiétnicos, “a Trinidad surgia como um terreno não turístico e complexo do ponto de vista da variedade de grupos étnicos e raciais”(p. 1). Primeiro, veio a conquista espanhola (Colombo, 1498). Antes de sua independência em 1962 ainda passaram por lá africanos, ingleses e holandeses. Acrescente-se uma grande leva de asiáticos no séc. XIX (indianos e chineses) e portugueses dos Açores envolvidos em querelas religiosas. É a partir de uma análise dessa colcha de retalhos caribenha que Miguel Vale de Almeida irá tecer considerações teóricas importantes acerca de etnicidade e raça, poder, diferenciação e identidade pessoal.
Quando chegou à ilha de Trindade, em 1994, o autor estabeleceu contato com a pesquisadora de ascendência portuguesa Jo-Anne Ferreira. O trabalho da mesma referia-se a uma análise da minoria étnica portuguesa na ilha de Trindade. “Ferreira defende uma visão histórica de grupo étnico contra uma visão de auto-identificação, visão esta que informa toda a sua pesquisa.” (p. 5)Em Trinidad, os portugueses não são considerados nem brancos nem negros, são classificados de acordo com um vasto corpus de categorias possíveis referentes à raça e ocupam funções sociais associadas a uma classe intermediária. Foi através do aprofundamento da relação social com Jo-Anne, conhecendo sua família e amigos, todos atores daquele espaço característico a que se propunha compreender, que o autor pôde enxergar “as nuances dos processos de identificação e diferenciação étnica e racial” (p. 8). O resultado de séculos de condição colonial – e algumas décadas pós-coloniais – marcados pela assimilação de diversos grupos etnicamente auto-indentificados como distintos é uma sociedade hegemonicamente construída a partir de categorizações arbitrárias de raça e etnia refletidas nas funções sociais desempenhadas pelos atores. Embora as pessoas (como os familiares de Jo-Anne) possuam plenas condições culturais de interpretar histórica e sociologicamente “uma sociedade que nasceu da escravatura e do sistema de classes com assento na raça” (p. 8), estão sujeitas ao fato de que “a origem étnica e racial é da ordem da hegemonia na Trinidad: é o grande modelo de referência para pensar e mapear as identidades sociais e é no seu seio e através da disputa semântica em torno dos seus referentes que se dá a luta por emancipações várias e mudanças de significados” (p. 9). Em Trinidad, a “tez da pele, a raça, a origem étnica, a religião, são o centro das conversas, das disputas, das alianças, até da vida política nacional e das produções culturais expressivas, da música ao grande ritual do Carnaval” (p. 9). Então observamos que esse processo de objetivação da origem étnica (que determina funções sociais e categorias generalizantes, quase sempre pejorativas, em relação a portugueses, negros, indianos) e o fato de uma mão-de-obra pós-escravista, juntos, ajudam a compreender a constituição da formação da identidade étnica na ilha de Trindade. O autor ainda observa que, ao lado de uma ideia predominante sobre o sincretismo da sociedade de Trinidad, encontra-se o paradoxo da fidelidade étnica. Esta concepção encontra paralelo em Wilmsem, o qual, segundo o autor, “desloca o centro do argumento para o fato de que a etnicidade surge no exercício do poder. Assim, têm sempre de coexistir várias etnicidades para que haja etnicidade, e os grupos dominantes não são nunca etnicidades, pois detêm eles o controle definicional hierarquizante.” (p. 16) Obervamos que o acesso a recursos e meios de produção é ulterior à “consciência étnica” e que o conceito de etnicidade, na prática, pode ser utilizado por grupos de forma política e marginalizante. Uma teoria sobre a etnicidade que leve em conta tais variantes está mais próxima, segundo o autor, de dar conta da análise da “mudança social”. Etnicidade estando ligada a “condições objetivas de desigualdade na arena do poder social”, enquanto a identidade “refere-se à classificação subjetiva num palco de prática social” (p. 16) Então, a etnicidade é uma circunstância e a identidade um “estado existencial”? Segundo Miguel Vale de Almeida, mais que representação de uma circunstância, a etnicidade deve levar ao questionamento dos critérios utilizados pelos grupos que tomam definições, enquanto a identidade, antes de um aspecto da existência, apresenta caráter ativo e performativo.
Antes de finalizar o capítulo, o autor faz certas considerações, alertando para os usos de palavras como multiculturalismo, pós-modernidade e globalização, fluxos, fronteiras, e, ainda, comentando a perspectiva radical nos estudos que relacionam cultura e poder. Para o autor, na análise de uma construção social multiétnica pós-moderna faz-se necessário levar em consideração as relações de poder, mas elas precisam ser analisadas à luz dos empreendimentos políticos coletivos e, ainda, levar em consideração a subjetividade que consta nos estilos e projetos de vida individuais.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sobre a autoridade etnográfica

CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. 320p.

Resenha de Eduardo Lopes Teles

James Clifford é professor do Programa de História da Consciência na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (EUA). Em sua obra, sempre versando sobre antropologia e modernidade, encontramos Person and myth: Maurice Leenhardt and the melanesian World (1982), The predicament of culture: twentieth-century ethnography, literature and art (1988), Routes: travel and translation in the late twentieth century (1997). Como o próprio autor destaca, em entrevista concedida a José Reginaldo dos Santos Gonçalves, sua obra sofre grande influência de Raymond Williams, principalmente do livro Cultura e Sociedade, em que ele historiciza a idéia de Cultura nas “versões mais literárias e humanistas”. A partir desse caminho aberto por Williams, Clifford vai ver novo horizonte ser trilhado e propor historicizar a cultura no sentido antropológico ou etnográfico (CLIFFORD, 1998, p.253-4).
No primeiro artigo, Sobre a autoridade etnográfica, Clifford demonstra como se foi construindo historicamente a noção de autoridade etnográfica, ou seja, o modo como o autor se coloca presente no texto, como ele legitima um discurso sobre a realidade. Trata-se do famoso “Eu estive lá”, que dá provas de que o que pesquisador viu existe, do que o que ele diz é verdadeiro. Nesse sentido, Malinovski, principalmente com o seu Os Argonautas do Pacífico Ocidental repleto de fotografias é o divisor de águas. Antes dele, “o etnógrafo e o antropólogo, aquele que descrevia os costumes e aquele que era construtor de teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos. (Uma percepção clara da tensão entre etnografia e antropologia é importante para que se perceba corretamente a união recente, e talvez temporária, dos dois projetos)” (CLIFFORD, 1998, p.26). Após Malinowski, ou mais precisamente de 1900 a 1960, assistimos cada vez mais a profissionalização e academicização do trabalho de campo, que se torna hegemônico. Por outro lado, a etnografia passou a encenar estratégias específicas de autoridade, onde o autor tentava traduzir para o leitor a sua experiência em texto. Pergunta-se Clifford: “Se a etnografia produz interpretações culturais através de intensas experiências de pesquisa, como uma experiência incontrolável se transforma num relato escrito e legítimo?” (CLIFFORD, 1998, p.21). A resposta talvez possa ser encontrada na criação, onde Malinowski foi grande contribuinte, de “um novo teórico pesquisador de campo que desenvolveu um novo e poderoso gênero científico e literário, a etnografia, uma descrição baseada na observação participante” (CLIFFORD, 1998, p.27).
Para que esses modos de autoridade etnográfica se firmassem, eram necessárias, no entanto, algumas inovações institucionais e metodológicas. Clifford cita, em primeiro lugar, a legitimação do pesquisador de campo profissional, de padrões normativos de pesquisa, de sofisticação científica e da simpatia relativista. Outra questão importante era o domínio da língua nativa, ou apenas a utilização de termos lingüísticos nativos pelo pesquisador na etnografia, onde o domínio da língua não era crucial. Em terceiro lugar, como se uma cultura pudesse ser apreendida apenas pelo que vê o observador treinado, dava-se ênfase ao poder de observação. “Como uma tendência geral, o observador-participante emergiu como uma norma de pesquisa. Por certo o trabalho de campo bem-sucedido mobilizava a mais completa variedade de interações, mas uma distinta primazia era dada ao visual: a interpretação dependia da descrição” (CLIFFORD, 1998, p.29). Também se buscava aliar a descrição à teoria, como forma de “chegar ao cerne” de uma cultura mais rapidamente. Assim, a pretensão era que a etnografia estivesse mais para abstrações teóricas do que para inventários exaustivos de costumes e crenças. Em quinto lugar, como a idéia de que a cultura era um todo complexo, achava-se que o entendimento poderia ser obtido através do estudo exaustivo de uma das partes desse todo. Por isso, se privilegiavam as análises sobre instituições específicas da cultura por parte do pesquisador. Por fim, havia uma preferência pelos aspectos sincrônicos na análise, devido ao curto tempo de duração da pesquisa, onde muitos estudos acabavam perdendo de vista a dinamicidade da cultura.
Em seguida, James Clifford focaliza em seu texto os modos de autoridade: o experiencial, o interpretativo, o dialógico e o polifônico. O modelo clássico de modo de autoridade seria o experiencial, que é exemplificado com Malinwski, onde se tenta comprovar o “Eu estive lá”. Também se tenta mostrar que uma experiência de campo foi produtiva envolvendo “o leitor na complexa subjetividade da observação participante”, ou então, unindo “o leitor e o nativo numa participação textual” (CLIFFORD, 1998, p.32). Sendo assim, há um processo que cria a idéia de que o etnógrafo possui uma “sensibilidade para o estrangeiro” e da etnografia como portadora de uma verdade, mas que, ao mesmo tempo podia ser encarada como mistificação. No fundo mesmo, a experiência do etnógrafo não pode ser traduzida. “Os sentidos se juntam para legitimar o sentimento ou a intuição real, ainda que inexprimível, do etnógrafo a respeito do “seu povo” (CLIFFORD, 1998, p.38).
Sobre o modo de autoridade interpretativo, a crítica principal recai no entendimento de que se possa ver a cultura como um conjunto de textos, “‘a textualização’ é entendida como pré-requisito para a interpretação”. Aqui, o discurso se transforma num texto (CLIFFORD, 1998, p.39). Porém, para o autor, não há como você trazer um discurso para ser interpretado tal qual um texto é lido. “A interpretação não é uma interlocução. Ela não depende de estar na presença de alguém que fala” (CLIFFORD, 1998, p.40). Por conseguinte, Clifford destaca que, “em última análise, o etnógrafo sempre vai embora, levando com ele textos para posterior interpretação”, pois “o texto, diferentemente do discurso, pode viajar. Se muito da escrita etnográfica é feita no campo, a real elaboração de uma etnografia é feita em outro lugar” (CLIFFORD, 1998, p.40-41). Os textos são então desligados de seu contexto de produção e realocados ficcionalmente num contexto englobante, onde os autores do evento (um ritual, uma festa, por exemplo) separam-se de sua produção para dar lugar ao etnógrafo, entendido agora como uma espécie de intérprete literário.
Atualmente esses dois modos de autoridade, o experiencial e o interpretativo, estão cedendo lugar ao dialógico e ao polifônico. O modo de autoridade dialógico entende a etnografia como resultado de “uma negociação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais sujeitos conscientes e politicamente significativos” (CLIFFORD, 1998, p.43). Já o modo de autoridade polifônico, que rompe com as etnografias que pretendem conter uma única voz, geralmente a do etnógrafo, propõe a “produção colaborativa do conhecimento etnográfico, citar informantes extensa e regularmente” (CLIFFORD, 1998, p.54). Desse modo, o autor nota que uma “realidade cultural” acaba sendo inventada através de um processo textual, já que o etnógrafo precisa torná-la inteligível para o leitor, que acha estranha essa “realidade cultural”. Contudo, Clifford vê que a antropologia moderna tenta por os informantes nativos como construtores ativos dessa realidade, quebrando o poder absoluto do etnógrafo baseada na sua observação pessoal. As múltiplas vozes presentes na etnografia, que se queria esconder, agora se quer descobrir.
Por fim, em Sobre a autoridade etnográfica, James Clifford se distancia do entendimento canônico problematizando a questão do que seja a etnografia. Nesse sentido, releva os “processos criativos (e, num sentido amplo, poéticos) pelos quais os objetos culturais são inventados e tratados como significativos” (CLIFFORD, 1998, p.39) e, ao mesmo tempo, mostra que a coerência que se busca na etnografia, tal qual um texto literário “depende menos das intenções pretendidas do autor do que da atividade criativa de um leitor” (CLIFFORD, 1998, p.57).

Por Eduardo para o GERTS

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

“LA DIFFÉRANCE” DE JACQUES DERRIDA

Referências
DERRIDA, J [1968]. La Différance. Disponível em:. Acesso em: 6 ago. 2010.
BOTÍA, A. B. Jacques Derrida. Disponível em:. Acesso em: 30 ago. 2010.

Jacques Derrida (El Biar, Argélia, 15 de agosto de 1930 – Paris, 8 de outubro de 2004), foi um pensador e escritor francês de origem argelina, conhecido principalmente como o criador da desconstrução. Seus trabalhos, (freqüentemente associados ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo), tiveram um impacto profundo sobre a teoria da literatura e os estudos literários de um modo geral.
Sua obra não se apresenta como algo terminado, sistemático ou ordenado. Sua escrita é fragmentaria, posicionando-se no limite da filosofia, pretendendo desconstruí-la. Seus primeiros livros trataram sobre fenomenologia (introdução A origem da geometria de Husserl, 1962 e a Voz e o Fenômeno, 1967, um estudo sobre o signo em Husserl, no qual mostra que a voz- portadora de um sentido ideal- possui uma prioridade sobre o fenômeno); comentários críticos às obras de Levinas, Foucault, Hegel, Lévi-Strauss, Freud e Rousseau, coligidos em seu livro A escritura e a diferença (1967); ao mesmo tempo, por estes anos, desenvolveu sua principal tese: nova concepção da escrita (não substituída pela palavra falada) como meio de se opor ao logo centrismo, sendo sua obra mais importante nesta linha Da Gramatologia (1967).
Na conferência La Différance, pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de janeiro de 1968, Derrida realizou uma análise semântica da différance. O autor propõe o uso do termo différance escrito com a no lugar de e, formado a partir do particípio presente do verbo diferir. A diferença entre a escrita da différance (com a no lugar do e) é puramente gráfica, se escreve ou se lê, porém não se ouve, outorgando um privilégio ao grafismo sobre o fonologismo na construção do sentido.
A différance, que para Derrida, não é uma palavra nem um conceito, pode possuir, entre outros significados, o de não ser idêntico, distinto, ser outro, discernível. Esta diferença, no sentido de diferir, tratada como questão de alteridade, de dessemelhança, de antipatia e de polêmica, produz-se entre os elementos ativa e dinamicamente, e com persistência na repetição, intervalo, distância, espaçamento.
Diferir ainda possui o sentido de atraso, a ação de deixar para mais tarde, de ter em conta o tempo e as forças em uma operação que implica um cálculo econômico, um desvio, uma demora, um atraso, uma reserva, uma representação, conceitos que se resumem a “temporização”.
Diferir no sentido de contemporizar é, para Derrida, recorrer, consciente ou inconscientemente a mediação temporal e contemporizadora de um desvio que suspenda a execução ou a satisfação do desejo ou da vontade, efetuando-o também num modo que anula ou modera o efeito. Esta temporização é também temporalização e espaçamento, fazer tempo do espaço e espaço do tempo, constituição originária do tempo e do espaço.
Espaciar temporalizando cria todo o sentido, qualquer dicotomia (subjetividade/objetividade, sensível/inteligível) nos é apresentada como o efeito da différance, é a raiz comum de todas as oposições, pelo que podemos falar que a différance produz todo tipo de diferenças.
As diferenças geradoras de sentido se materializam quando inscritas em cada elemento da língua mediante um traço, que remete a outros elementos da cadeia. Por meio desta estrutura de remissão todo elemento funciona, tem sentido ou significa, remetendo a outro elemento passado ou posterior. Assim, o traço se constitui no texto, sem que este necessite de algo que o explique ou justifique de modo transcendente.
A différance seria ainda a causalidade constituinte, o processo de ruptura e de divisão cujos elementos diferentes seriam os produtos ou efeitos constituídos. Ela não denota passividade ou atividade, recordando algo como a voz média, não implicando numa operação que se pense como passividade nem como a ação de um sujeito sobre um objeto, nem a partir de um agente nem de um paciente, nem a partir nem a vista de qualquer um dos termos.
Derrida tem nas reflexões semiológicas de Saussure uma das principais fontes para seu pensamento sobre a diferença. Saussure sublinhou o caráter arbitrário e diferencial do signo na linguagem. Os elementos da significação funcionam pela rede de oposições que os distinguem e os relacionam uns aos outros. Neste sentido, apesar das críticas que formula a determinadas proposições saussureanas, Derrida colocará a diferença como a origem produtora de todo o sentido, e todo o processo de significação como um jogo formal de diferenças.
Para o autor, a filosofia vive na e de differánce, tratando do mesmo que não é o idêntico. Este mesmo é a differánce como passo desviado e equívoco de um diferente do outro, de um termo da oposição ao outro. A filosofia opera com duplas em oposição, onde cada um aparece como differánce do outro, como o outro diferido na economia do mesmo, o inteligível como diferindo do sensível, como sensível diferido; o conceito como intuição diferida-diferente; a cultura como natureza diferida-diferente.
Baseando suas reflexões nas idéias de Nietzsche, Derrida compreende que a differánce é esta discórdia “ativa”, em movimento, de forças diferentes e de diferenças de forças que ele opõe a todo sistema da gramática metafísica em todas as partes onde governa a cultura, a filosofia e a ciência.
As idéias de Heidegger acerca das diferenças entre o ser e o ente são traço marcante no pensamento derridariano. Assim, Derrida destaca que a diferença entre o ser e o ente tem desaparecido sem deixar marca, traços. O traço mesmo da diferença se tem perdido, a marca em si mesma nunca pode manifestar-se como tal.
Pelo estilo denso de escrita, pela complexidade dos referenciais teóricos e debates que estabelece com vários pensadores, La Différance é um texto cuja leitura não é indicada a um público não acadêmico, sendo produtiva para pesquisadores que trabalham com questões de alteridade, identidade e relações interétnicas.
Portanto, La Différance de Jacques Derrida, texto muito rico como contribuição teórica, constrói importantes reflexões sobre a constituição semântica do termo différance que, em seus aspectos gerais, transmite uma mensagem fundamental: a importância de vivermos juntos, de maneira harmoniosa, na diferença.

Por Diogo Monteiro.
10 set. 2010.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Identidade étnica, identificação e manipulação

Roberto Cardoso de Oliveira. “Identidade Étnica, Identificação e Manipulação”. In: Identidade, Etnia e Estrutura Social, 1976.

Roberto Cardoso de Oliveira, pós-doutorado pela Harvard University (1972), doutorado em Sociologia (1966) e graduado em Filosofia (1953) pela Universidade de São Paulo. Foi professor em várias universidades, pesquisou nas áreas de epistemologia da Antropologia, identidade, etnicidade e cidadania. Foi autor e organizador de vários livros, entre eles: “O Trabalho do Antropólogo”; “Nacionalidade e Etnicidade em Fronteiras”; “Sobre o Pensamento Antropológico” e “Identidade, Etnia e Estrutura Social”.
Neste capítulo, escrito nos anos 70, o autor objetiva discutir o conceito de identidade étnica, descrever algumas modalidades de sua constituição, possibilidades de sua explicação e manipulação. O contato interétnico, diz Oliveira, é um dos fenômenos mais comuns na contemporaneidade, pois parte das relações entre indivíduos e grupos distintos, sejam nacionais, transnacionais, raciais ou culturais. Esse contato deu um grande boom graças ao processo de globalização, diminuindo e expandindo, ao mesmo tempo, o mundo de hoje.
O conceito de grupo étnico deve ser concebido como um “tipo de organização social” que possui características de auto-atribuição e atribuição por outros com propósitos de interação que se relaciona diretamente a identidade étnica. Um grupo étnico agrega uma população que partilha uma cultura comum. Os indivíduos ou os grupos étnicos têm sido classificados a partir de seus traços culturais particulares que são visíveis. As diferenças passam a ser agora entre culturas, não entre organizações étnicas que podem ser relacionadas como um conjunto de traços culturais, os quais conduzem as análises sobre as formas culturais manifestas. Essa definição de grupo étnico designa uma população que:
a) “se perpetua principalmente por meios biológicos”;
b) “compartilha de valores culturais fundamentais, posto em prática em formas culturais num todo explícito”;
c) “compõe um campo de comunicação e interação”;
d) “tem um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros como constituinte de uma categoria distinguível de outras categorias da mesma ordem” (Barth, 1969, p. 10-11). Para Oliveira, a identificação étnica se dá quando uma pessoa sugestiona o uso de termos raciais, nacionais ou religiosos para se identificar e ao mesmo tempo aos outros comuns como uma noção de grupo.
É importante frisar que é no nível coletivo ou social que a identidade se edifica e se realiza. Já a sua expressão étnica, os mecanismos de identificação são fundamentais, porque eles refletem a identidade em processo assumido por indivíduos ou grupos em diferentes situações concretas. Em todos os âmbitos a identidade possui um conteúdo marcadamente reflexivo e/ou comunicativo que supõe um código (signos) de categorias a fim de orientar e desenvolver as relações sociais como um sistema de oposições ou contrastes. A identidade étnica é um meio de diferenciação em relação a algum indivíduo ou grupo que se confrontam e se afirmam negando ou aceitando a outra identidade visualizada.
Percebe-se que a identidade étnica emerge ou é ativada em situações particulares, principalmente de conflito. Nas relações interétnicas em conjunto com a dinâmica de fricção interétnica, as relações sociais se dão em termos de dominação e sujeição do indivíduo em relação ao grupo étnico pertencente como se verá nos exemplos a seguir: (I) “A Identidade em contextos intertribais” e (II) “A identificação no confronto com os brancos”:
(I) De uma coisa já sabemos, que a identidade contrastiva e o sistema de referência ideológico são formas de atualizar a identidade étnica. Por exemplo, em regiões interculturais como o alto Xingu, diferentes grupos indígenas, em interação, afirmam suas respectivas identidades por meio de um sistema de referência ou de categorias construídas como uma ideologia de relações intertribais, principalmente em relação aos de “fora”. Nessa região, os matrimônios entre os indivíduos dos diferentes grupos sociais produziram um sistema de relações sociais em termos do qual um indivíduo sempre terá alternativas para sua identificação tribal, seja cumprindo a regra da patrilateralidade, quer invocando a matrilateralidade. Como regra secundária, um indivíduo também poderá invocar seu conhecimento da língua e o lugar de nascimento como indicador de pertinência histórica. Infelizmente em regiões onde a colonização foi mais intensa, como a do Chaco, às margens ocidentais do rio Paraguai, território brasileiro, não permitiu que sobrevivessem nos dias de hoje sistemas de relações intertribais que nem a do alto Xingu e do Rio Negro. Mas alguns fenômenos podem ser observados e entendidos através da concepção das identidades étnicas (ou tribais). Aqui Oliveira faz menção à manipulação de identidades feitas por um koixomunetí (médico-feiticeiro) da aldeia Terêna denominada Cachoeirinha. É a história do índio F.S, filho de pai Layâna e mãe Terêna, ambos, subgrupo Guaná (estes se fundiram com diversos outros grupos, remanescendo com maior intensidade, a etnia Terêna). Este koixomunetí afamado em ambas as aldeias joga com suas “identidades virtuais” dependendo das circunstâncias e das pessoas com quem interage. Outra forma de identificação em contextos intertribais, é a chamada “identidade histórica” aqui mencionada os Kinikináu que por ser um grupo minoritário e estigmatizado, para efeito de competição contrastam sua identidade com os seus vizinhos Terêna. Ela emerge sempre quando se pretende marcar seus direitos sobre a terra. Entretanto, pode ser renunciada dependendo das circunstâncias, mas que a qualquer momento pode ser invocada, atualizada. Os Kinikináu na falta de um grupo étnico de referência apelam à sua historcidade para se representarem como categoria étnica num sistema ideológico determinado.
(II) As relações interétnicas não se dão apenas em sistemas de interações intertribais, dão-se também em situações de contato entre índios e brancos e status sociais, sendo que esta relação é sempre de dominação e sujeição. Tais fenômenos se manifestam em conformidade com a diversidade das situações de contato. As relações interétnicas envolvem etnias de escalas diversas. Dentre os casos que mais afetam e desagregam os grupos indígenas em contato com a sociedade nacional, estariam às crianças que despertam desde cedo uma identidade negativa que se prolonga até a maturidade. O autor relata um caso de manipulação de identidades entre índios e brancos a partir de terras de reservas indígenas onde habitavam não índios - arrendatários de terras. O caso é a respeito de um mestiço residente na aldeia Mariuaçu, dentro da reserva supervisionada pelo “Posto Indígena Ticunas”. O grupo familiar em foco preocupava-se em identificar seus membros mais jovens, filho de um mestiço (de pai branco e mãe Tukúna) e de uma Tukúna. Dentro dos princípios estruturais da etnia Tukúna essas crianças jamais poderia ser identificados como membros desta etnia, posto que esta se recebe pela linha paterna. O avô das crianças, sogro do mestiço, percebendo que a não incorporação dos seus netos na comunidade Tukúna constituía uma ameaça para eles aos seus direitos sobre a terra da reserva, promoveu a identificação étnica dos novos membros de sua família a etnia Manguari recebendo nomes do clã materno. Esta era uma pressão vista não só do lado da comunidade Tukúna de Mariuaçu, ciosa de não permitir intrusos em suas terras, mas também do posto indígena que descrimina os moradores não índios da reserva. A decisão do sogro ao ativamento da identificação étnica de seus netos e genro é sintomática da sociedade nacional afirmando seus direitos a terra e a proteção numa região de conflitos entre brancos e índios.
Enfim, Oliveira expõe seu método dizendo que partiu de uma abordagem estruturalista. Trata-se de apreender “modelos conscientes”, pois não se pretendeu esgotar todas as possibilidades de emergência da identificação étnica. Nem se poderia esgotar. Os argumentos das modalidades desse tipo de identificação está contido na ordem do discurso, particularmente de cunho ideológico. O conteúdo cultural proposto significa valores que são fatos empíricos “passíveis de serem descobertos” (p. 21), pois são pontos de vistas dos próprios agentes culturais. Nele coexistem diferentes valores no interior de uma mesma cultura; mas significa também “padrão”. Nesse sentido, “ela é passível de uma certa escolha ou opção em situações determinadas (...)” (p. 22). A cultura do contato, portanto, pode ser entendida para além de um sistema de valores, sendo o conjunto das representações que o próprio grupo étnico faz da sua situação de contato em que está inserido e se identifica a si próprio e aos outros.

Por Mateus Neto