terça-feira, 6 de setembro de 2011

Notas sobre uma experiência etnográfica: Juventudes, estilos de vida e os usos dos lugares no Bairro Siqueira Campos

Este texto é sobre a possibilidade de pensar os métodos e as técnicas da pesquisa etnográfica, como também uma reflexão sobre o “campo” para a Antropologia. Tomo aqui como referência os métodos e as técnicas de pesquisa aplicadas em minha proposta de pesquisa para a Dissertação de Mestrado em Antropologia. Desde o segundo semestre de 2009, sou estudante do NPPA/UFS. Quando surgiram as primeiras ideias para a realização de um trabalho etnográfico, eu tinha muitas intuições e, também, muitas dúvidas. Devido à minha formação em História, estava muito ligado a questões historiográficas. Mas, como todo estudante-pesquisador ao “iniciar-se” numa dada área do conhecimento, precisava passar por este “rito de passagem”. Assim, fiz várias incursões às bibliotecas e fui mantendo contato com uma ampla bibliografia sobre juventudes, culturas juvenis, estilos de vida, processos de identificação e os usos dos lugares de lazer e sociabilidades. Dessa forma, fui aos poucos estranhando o universo cotidiano e sociocultural ao qual estava aparentemente inserido. Além de perceber, também, os aspectos da análise antropológica.

Desde 1991, sou morador do Bairro Siqueira Campos, em Aracaju, estado de Sergipe, Brasil. Este bairro é um dos maiores de Aracaju, além de ser um grande polo comercial e de consumo cultural. Atualmente, na Praça Dom José Thomaz, a única do Siqueira Campos, há uma grande concentração e circulação de jovens que se movimentam pelas ruas, bares-lanchonetes, lanchonetes e equipamentos urbanos a procura de lazer e entretenimento e, tem esta praça, como espaço central no bairro, como um espaço âncora de identificações e sociabilidades, o lugar praticado, onde as juventudes e seus estilos de vida demarcam, de modo relativamente estável, lugares como “territórios de subjetivação” e redes de solidariedade.

Geralmente, é na Praça Dom José Thomaz onde encontro os amigos, jogo basquete e compartilho dos serviços públicos de transportes. No entanto, até ingressar no Mestrado em Antropologia Social, nunca tinha problematizado tais orientações. A partir de uma bibliografia especializada sobre os estudos culturais, juventudes e os estilos de vida, ao qual fui mantendo contato aos poucos, percebi que nunca estive inserido nessas redes de socialização e comecei a estranhar o que até então me era aparentemente familiar. De fato, seria praticamente impossível estabelecer laços com todos os indivíduos e lugares com os quais cruzamos no dia a dia de uma cidade, ou mesmo, nos bairros onde moramos.

Passei, então, a caminhar e a analisar os processos de identificação e diferenciação realizados pelos jovens nos usos dos lugares de lazer e sociabilidades no Bairro Siqueira Campos, a partir de construtos de estilos de vida associados à música, o que implicou a investigação sobre as práticas e o consumo de determinados bens ligados às culturas juvenis. Passei a perceber inclusive, a circulação de indivíduos de várias procedências da cidade, como alguns grupos de jovens que são reconhecidos na região como “pagodeiros”, como a “galera do rock”, a “galera do hip hop” e a “galera do reggae”. Em todos os casos os grupos são identificados por bens ligados aos estilos musicais e as culturas juvenis.

Para tal análise, me cerquei de diferentes processos metodológicos, mas como um exercício intelectual de atravessamento e distanciamento, já que o universo pesquisado compõe meu mapa político e sociocultural cotidiano. A partir do contato com as reflexões do antropólogo Gilberto Velho (1979), insisti na ideia do autor de reconhecer as diferenças e estranhar o que está próximo. Enveredei por problematizar as vivências e as relações afetivas com o campo de estudo, o “estar lá”. Velho publicou diversos textos nos quais descreveu como viviam os moradores das camadas médias em um prédio de apartamentos do tipo conjugado, no bairro histórico de Copacabana, no qual residiu nos anos setenta do século vinte: o cotidiano, seus estilos de vida, o consumo e o porquê as pessoas moravam e valorizavam este bairro. Ao fazer a “observação participante” e problematizar o que aparentemente lhe era familiar, o autor, portanto, abriu margens e contribuiu significativamente para o desenvolvimento do método da “distância social” e “distância psicológica”: a trajetória antropológica de transformar o “exótico em familiar” e o “familiar em exótico”.

Ao seguir este prisma, passei a caminhar, a observar e a me relacionar de forma mais crítica com as pessoas, com os lugares de lazer, entretenimento e as sociabilidades da população jovem no Siqueira Campos. Essa perspectiva do caminhar, como diz Certeau, leva ao pesquisador a perceber como “[...] O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (1994, p. 38). Nesse sentido, os lugares são concebidos e metaforizados no caminhar dos seus agentes, e carregados por uma polissemia de sentidos. São os gestos, os hábitos de comer e beber, as gestualidades corporais, as práticas, os conflitos, os signos, as “artes de fazer” (CERTEAU, 1994) e as narrativas do cotidiano, cuja tessitura constitui o “uso da tática dos usuários” (Idem) para qualificar o espaço como um lugar de conhecimento, mas, sobretudo, de reconhecimento dos grupos. Neste caso, os da população jovem e os seus estilos de vida.

Nesta pesquisa, fiz mais que caminhar pelos lugares e conversar com as pessoas. A tentativa foi de uma “descrição densa”, o mapeamento da paisagem incorpórea do objeto pesquisado (GEERTZ, 1978). Como diz Geertz, à prática da etnografia não é somente estabelecer relações com o objeto de análise, mas manter um diário de campo, selecionar informantes, ir a lugares e voltar deles com informações; é observar os sistemas de símbolos em seus próprios termos e descortinar toda a trama social. Dessa forma, adotei alguns balizamentos e estratégias metodológicas, que permitiram uma melhor compreensão do objeto de estudo: levantamento bibliográfico, fontes documentais, entrevistas, observação participante e as caminhadas sistemáticas pela paisagem urbana dos lugares investigados.

Sendo assim, dividi a proposta de Dissertação em três capítulos: No primeiro, Espaços de lazer e sociabilidades da juventude no Bairro Siqueira Campos: lugares e estilos de vida; a ideia foi de traçar um panorama sobre a relação entre a cidade, o Bairro Siqueira Campos e a população jovem. A discussão gira em torno de descrever o território, as representações sobre o lugar, os espaços de lazer, as vivências e as sociabilidades no cotidiano do bairro ao longo do século vinte, fazendo conexões com a presença das juventudes. A análise contempla as narrativas produzidas pela imprensa e os intelectuais sergipanos, além das entrevistas com antigos moradores. Ainda nesse capítulo, dedico-me a descrever as transformações no cotidiano do Siqueira Campos, os lugares de lazer, as juventudes, as vivências e os estilos de vida, a partir da estratégia das caminhadas sistemáticas pela materialidade da paisagem e de entrevistas com os jovens praticantes desses espaços.

O segundo capítulo, O cotidiano, os usos e os discursos das juventudes sobre os lugares; paira sobre dois grandes eixos: no primeiro, faço incursões etnográficas sobre os usos dos espaços de lazer e sociabilidades, e as juventudes praticantes destes espaços. No segundo eixo, analiso os discursos, os usos, as práticas e os bens culturais que caracteriza essa população jovem e seus estilos de vida. Nesse sentido, estabeleço a discussão sobre a categoria “circuito” (MAGNANI, 2002) como conceito analítico, salientando a sua importância na análise do significado e da experiência proporcionada pelos jovens mediados pelas ações simbólicas. Evidencio os gostos culturais, os “grupos sociais de afinidades” e os estilos de vida presentes no Bairro Siqueira Campos.

No terceiro capítulo, Processos identitários juvenis no Bairro Siqueira Campos, busco a partir das reflexões de Gilberto Velho (1979, 2007, 2008) e da observação participante, manter um contato e uma vivência durante um período de tempo mais longo com o objeto de estudo, pois certos aspectos de uma cultura e de uma sociedade só emergem a superfície com um esforço maior, mais detalhado e aprofundado de observação e empatia. Analiso os estilos de vida, as tensões entre os “grupos sociais de afinidades”, as práticas, o consumo e as experiências particulares realizadas nos usos dos espaços de lazer e sociabilidades no âmbito do Bairro Siqueira Campos. Dessa maneira desenvolvo o argumento central desta Dissertação, a saber: os processos identitários juvenis como construtos de estilos de vida distintos, realizados nos usos dos lugares de lazer e sociabilidades no Bairro Siqueira Campos, ao incorporar situações singulares imediatamente reconhecíveis no cotidiano deste bairro. Evidencio ainda, quatro grupos juvenis distintos que são reconhecidos no Siqueira Campos como “pagodeiros”, a “galera do rock”, a “galera do hip hop” e a “galera do reggae”. Busco compreender como cada um dos grupos percebe os “outros” e como veem a “si mesmos”, além de analisar como eles se caracterizam e se relacionam com os espaços de lazer e sociabilidades no bairro, imprimindo um sentido aos lugares.

Referências

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 11 ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. v 1.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. “Os circuitos dos jovens urbanos”. In: Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2, 2005, pp. 173-205. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v17n2/a08v17n2.pdf.

PAIS, José Machado. Culturas Juvenis. Edição: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003.

VELHO, Gilberto (Org.). Rio de Janeiro: cultura, política e conflito. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2008.

________________. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

________________. Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2006.

________________. Desvio e divergência: uma crítica da patologia social. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1979.

________________. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. 8. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

2 comentários:

Mateus Neto disse...

olá pessoal, este texto é de Mateus Neto.

Phabbio Maktub disse...

Muito interessante o seu trabalho, caro Mateus. É bom perceber como as distantes teorias acadêmicas podem - e devem! - relacionar-se concretamente com a vida nossa de todos os dias. Sucesso, meu amigo!