quinta-feira, 12 de junho de 2014

Resenha - Reagregando o Social - Bruno Latour

A PERSPECTIVA DO ATOR-REDE
(Bruno Latour)

Por Daniela Bezerra

"O argumento deste livro pode ser definido de maneira simples: quando os cientistas sociais acrescentam o adjetivo “social” a um fenômeno qualquer, aludem a um estado de coisas estável, a um conjunto de associações que, mais tarde, podem ser mobilizadas para explicar outro fenômeno. [...] O que tenciono fazer no presente livro é mostrar por que o social não pode ser construído como uma espécie de material ou domínio e assumir a tarefa de fornecer uma “explicação social” de algum outro estado de coisa " (LATOUR, 2012, p. 17-18).

Talvez a leitura do enunciado tenha provocado em alguns a mesma reação que tivemos ao primeiro contato com obra Reagregando o social: uma introdução a teoria do ator-rede de Bruno Latour. Certamente a sentença “o social não pode ser construído” causa impacto, e o argumento usado pelo autor para chegar a tal conclusão desperta dúvidas, sobretudo, com relação a maneira em que percebemos e nos propomos a estudar o mundo ao nosso redor. Será que olhamos para esse mundo dinâmico em que vivemos com o mesmo olhar e pretensão que tinham os primeiros pensadores da sociologia?
Em Latour, como nos alerta o enunciado, encontramos uma proposta de redefinição daquilo que para nós, sociólogos, seria tão claro, tão fácil de identificar: o social.  O autor critica a maneira como os cientistas sociais trabalham com esse termo, pois da forma que é apresentado comumente, transmite a falsa idéia de que é possível encontrar com facilidade um conjunto de associações que podem fornecer explicações para um dado fenômeno. Retomando ao significado etimológico da palavra sociologia, Latour explica o seu posicionamento: socio - logia significa ciência do social e esse é justamente o foco do problema. Nem a sociedade é estável e nem a ciência, portanto, o objeto e a metodologia das ciências sociais precisam passar por uma nova roupagem.
Podemos então nos perguntar: “que vem a ser uma sociedade? Que significa a palavra social? Por que se diz que determinadas atividades apresentam uma dimensão social? Como alguém demonstra a presença de fatores sociais operando? Quando o estudo da sociedade ou de outro agregado social se torna profícuo?” (LATOUR, 2012). Para responder as tais indagações Latour recorre a duas abordagens da sociologia, uma que chama de tradicional e outra de associativa. A primeira reflete, segundo ele, uma posição de senso comum, a idéia de que a sociedade está presente em tudo, de que vamos estudar e compreender o “contexto social” ou a “estrutura social” ou ainda os “fatores sociais” que levam a tal ou qual fenômeno. “Comentar a inevitável dimensão social daquilo que nós e os outros fazemos em sociedade tornou-se tão corriqueiro quanto usar um celular, pedir uma cerveja ou discorrer sobre o complexo de Édipo” (21).  Na segunda perspectiva, não existe ordem social, contexto social, força social.  É cair na idéia de que a sociedade não existe, contudo, o social pode ser entendido como associações entre elementos distintos, “um tipo de conexão que não são em si mesmas sociais”.
O “social” é então entendido como movimento de reassociação e reagregação, ou seja, está longe do estável, do estagnado. A proposta de Latour é encontrar uma alternativa para a sociologia, que não se desprenda por completo do seu “apelo tradicional”, pois reconhece que a sociologia do social é útil quando buscamos compreender os elementos já aceitos na esfera coletiva. Mas quando adentramos nas mudanças trazidas pela inovação tecnológica e até mesmo as questões de grupo (os limites de suas fronteiras) essa sociologia não dá conta de perceber as associações exigentes.
A teoria do ator -rede – ou ANT – surge nesse contexto: da necessidade em vincular a teoria social a estudos de tecnologia. Segundo essa teoria, precisamos perceber as amarrações existentes entre humanos e não humanos, homens e objetos são vistos aqui como igualmente capazes de gerar significados. O entendimento de redes está relacionado a idéia de que existem vários fios que nos conectam, sem necessariamente formar uma unidade, mas sim um processo contínuo de associações.
A teoria do ator - rede postula ainda que definir ou ordenar o social é tarefa dos próprios atores e não dos analistas, no lugar de priorizar a compreensão da ordem, buscar perceber as conexões. “É como se disséssemos o atores: ‘não vamos tentar disciplinar vocês, enquadrá-los em nossas categorias; deixaremos que se atenham os seus próprios mundos e só então pediremos sua explicação sobre o modo como os estabeleceram’” (LATOUR, 44).
Por seu alto nível de abstração, a ANT pode parecer a primeira vista algo irreal para ciência. Mas daí o autor mais uma vez nos leva a refletir: “por que somente a sociologia estaria proibida de inventar seu próprio caminho e obrigada a ater-se ao óbvio? (LATOUR, 45).
Na primeira parte do livro intitulada Como desdobrar controvérsias sobre o mundo social, encontramos algumas críticas do autor ao fato das ciências sociais terem deixado de lado algumas das associações existentes. Nessa parte Latour expõe as 5 grandes incertezas: sobre a natureza do grupos, das ações, dos objetos, dos fatos e dos tipos de estudos realizados sob o rótulo de social. Também apresenta as dificuldades em aplicar a metodologia da ANT. daremos atenção especial nesse resumo as duas primeiras fontes de incerteza.
Na primeira fonte – “não há grupos, apenas formação de grupos” – a crítica de Latour é direcionada a tendência da sociologia em procurar enquadrar os atores sociais em grupos, o que acaba influenciando a pesquisa social, já que delimita a própria extensão da pesquisa. “A primeira característica do mundo social é o constante empenho de alguns em desenhar fronteiras que os separem de outros” (51). Ele chama a nossa atenção para o fato de que a sociologia tem dado maior atenção em encaixar os atores em entidades do que em perceber as associações. É como se deixássemos de lado a constatação de que existem inúmeras formações de grupos, algumas inclusive, contraditórias.
O que o autor apresenta aqui é o primeiro passo do método da ANT: rastrear as pistas deixadas pelos atores em suas associações. A função do cientista social não é dá estabilidade ao social, e a idéia de grupo fixo sustenta isso. É antes, buscar perceber as conexões existentes, as associações feitas. Chegamos então a primeira fonte de incerteza: “não há grupo relevante ao qual possa ser atribuído o poder de compor agregados sociais e não há componente estabelecido a ser utilizado como ponto de partida incontroverso” (LATOUR, 2012; 52).
A aplicação dessa metodologia no momento atual, onde não encontramos na sociologia um consenso geral do que representaria um agrupamento, seria até mesmo uma tarefa mais fácil. Os trabalhos desenvolvidos dessa maneira conseguem ter mais sucesso na percepção das controvérsias na formação dos grupos, nas disputas e nos recursos mobilizados para esse feito.
Latour nos convida a perceber que em sua formação, os grupos deixam traços que podemos perseguir. Primeiramente podemos observar que na delimitação de um grupo há sempre aqueles que falam sobre ele, o que deveria ser ou o que forma precisa assumir. Estes são os que costumeiramente justificam a existência do grupo. “Não existe grupo sem oficial de recrutamento. Não há rebanhos de ovelhas sem o seu pastor” (LATOUR, 2012; 55).
Um segundo traço tem a ver com o fato de que no percurso de construção de um grupo sempre são expostos antigrupos, o que eles não são. O delineamento de grupos é uma tarefa dos próprios atores, o que ao pesquisador é vantajoso, pois mostra como os atores sociais mapeiam o “contexto social”. O pesquisador que trabalha com a ANT percebe que está, “em termos de reflexividade, sempre um passo atrás daqueles que estuda” (57).
Em terceiro, as fronteiras são marcadas, defendidas e conservadas, essa é uma maneira de tornar segura a definição do grupo. Por fim, muitos porta vozes permitem a definição durável de um grupo, estes podem ser um cientista social, um estatístico, um jornalista, entre outros. Esses quatro traços apresentados acima constituem, portanto, conexões sociais possíveis de serem estudadas, mais informativas e reais do que partir de um grupo supostamente bem delimitado. De acordo o autor, os teóricos do social seguem a tendência “de apelar para a inércia social” (59), mas os da ANT percebem que os grupos são feitos e refeitos constantemente, é uma definição performativa.
Na segunda fonte de incerteza – “a ação é assumida” – Latour afirma que o ator não é a fonte da ação, mas é “alvo de um amplo conjunto de entidades que enxameiam em sua direção” (LATOUR, 2012; 75). Usar a expressão ator significa que não se sabe quem está de fato atuando, a fonte de incerteza está na própria origem da ação. “A incerteza deve permanecer como tal o tempo todo, pois não vamos afirmar pressurosamente que os atores talvez não saibam o que fazem, enquanto nós, cientista sociais, conhecemos a existência de uma força social capaz de obrigá-los a fazer as coisas sem querer” (LATOUR, 2012; 76).
Mas aí também encontramos um problema: priorizar as variáveis ocultas de uma ação. O alerta dado por Latour é referente aos perigos de substituir uma expressão precisa por aquilo que é implícito a ela. Por exemplo: um criminoso que diz, “não tenho culpa, meus pais eram cruéis”. E nós, enquanto cientistas sociais, dizemos: “a sociedade fez dele um assassino”, ou “ele tenta justificar o erro”, ou ainda, “ele é produto de um conjunto e ações cruéis de seus pais”. Quando na verdade ele só disse: “não tenho culpa, meus pais eram cruéis”. Isso significaria que devemos deixar de lado as tentativas de apreender as variáveis ocultas? Não. Mas precisamos dá ênfase também aos outros impulsos da ação.
Segundo o autor não saberemos ao certo o que nos levou a agir, mas podemos identificar alguns argumentos explicativos da ação: são parte de um relato, e, portanto, responsáveis por um efeito; possuem uma figura qualquer, ou seja, a ação possui uma imagem ou corpo que nos proíbe ou exige fazer algo; também aparece opondo-se a outras ações e são acompanhadas por uma teoria da ação, inclusive dos próprios atores da ação.
Se aceitamos a premissa de que existe um sentido claro para a ação, ou seja, de que ela acontece por um motivo conhecido, óbvio, a sociologia poderá ser vista como uma disciplina que induz alguém a fazer alguma coisa. Como então proceder? Latour responde: “temos de tomar uma decisão, caso desejemos estabelecer conexões sociais de maneiras novas e interessantes: ou nos afastamos dos analistas que só dispõem de uma metafísica completa ou ‘seguimos os próprios atores’, que apelam para muitas”.

LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador: EDUFBA-EDUSC, 2012.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

CONSUMIDORES E CIDADÃOS: O DIÁLOGO NORTE-SUL NOS ESTUDOS CULTURAIS

Por Florival Souza Filho

Estuda a globalização como um processo de fracionamento articulado do mundo e de recomposição de suas partes no que a globalização não é um simples processo de homogeneização, mas de reordenamento das diferenças e desigualdades, sem suprimi-las, por isso, a multiculturalidade é um tema indissociável dos movimentos globalizadores.

As investigações tomam como objetos de estudo, as cidades e as indústrias culturais da América Latina, enfatizando os processos globalizadores, as tendências hegemônicas da urbanização e industrialização da cultura.

Afirma o autor que a América Latina foi "inventada" pela portuguesa e espanhola e reelaborada pela França e Inglaterra, numa relação de dependência que implicou conflitos e hibridações, concentrando-se no séc. XX nos vínculos com os Estados Unidos.

As modificações ocorridas durante a passagem da subordinação européia para a norte-americana - mercados agrícolas, industriais e financeiros, na produção, circulação e consumo de tecnologia e cultura, movimentos populacionais, turismo, migração e exilados - alteraram a estrutura e o caráter dessa dependência.

No entanto os vínculos com os Estados Unidos já não mais se deixam explicar por uma relação colonial, nem imperialista que em seguida, tornar-se-ia um processo de reordenação em uma posição periférica e dependente dentro de um sistema mundial de intercâmbios desiguais disseminados.

As vezes, interpreta-se a transferência da Europa para os Estados Unidos como a passagem de um exercício sociopolítico para uma submissão socioeconômica, porém foi com a Europa que os latinos aprenderam a ser cidadãos ( constituições; construção de regimes republicanos; partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais ) enquanto que os vínculos com os Estados Unidos, tornaram-nos consumidores, processo esse que foi fortalecido pela instabilidade democrática e o cancelamento dos organismos de representação da cidadania durante as ditaduras.

Segundo Arjun Appadurai e James Holston, a noção de cidadania se expande aos direitos de habitação, saúde, educação e apropriação de outros bens de consumo. Canclini propõe então reconceitualizar o consumo, como espaço que serve para pensar, e no qual se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolitica e psicológicas nas socieades.

CIDADES

Reconhecer essas transformações não significa prognosticar a dissolução da cidadania no consumo, nem das nações na globalização; é entender as transições da identidades "clássicas" ( nações, classes, etnias ) que não nos restringem às novas estruturas globais que consideram de outro modo nossos interesses e desejos, é pensar a recomposição das relações sociais e as insatisfações - mal-estar da época, crise universal dos paradigmas e das certezas - do fim do século XX.

Embora analise as megalópoles latinas e considere-as cidades globais, vejo que as transformações que nelas ocorrem têm como focos geradores processos intrínsecos derivados do desenvolvimentos desigual e das contradições da sociedade: migrações maciças; contração do mercado de trabalho; políticas urbanas de habitação e de serviços insuficientes; conflitos interétnicos; deterioração da qualidade de vida. Ou seja, as grandes cidades imaginadas pelos governos e migrantes são o cenário caótico de mercados informais nos quais multidões tentam sobreviver sob exploração, violência ou solidariedade.

COMUNICAÇÕES

O crescente diálogo entre especialistas dos estudos culturais dos Estados Unidos e América Latina é feito da análise de discursos, ( literários e artísticos ), testemunhos, textos populares e outros excluídos do cânone e, geralmente as investigações se limitam à cultura não industrializada, e sua elaboração crítica restringe-se às instituições universitárias.

Há mais de meio século os intercâmbios culturais ocorrem mais nas indústrias de comunicação do que na literatura, nas artes visuais ou na cultura. Algo semelhante ocorre com o patrimônio histórico no turismo e com a circulação de músicas étnicas ou nacionais que contribuem para reproduzir e renovar os imaginários das Américas do Norte e do Sul. Mas é sobretudo na competição e nas alianças entre empresas de comunicação ( de televisão, informática e editorial ) que se está gestando a multiculturalidade.

Pretendo nesse livro, ressituar a teorização e os debates sobre identidade, heterogeneidade e hibridação na disputa pelo espaço audiovisual que vem se desenvolvendo entre dos Estados Unidos, a Europa e da América Latina. Mostrando que os conflitos pela expansão da comunicação reproduzem e repropõem os dilemas dos latinos entre serem latinos ou americans, a elucidação conceitual e a investigação empírica das diferenças e dos encontros neste triângulo inter-regional são decisivas para reorientar as políticas culturais.

Faz-se necessários que os pesquisadores, realizem análises cuidadosas da remodelação dos espaços públicos e dos dispositivos que se perdem ou se recriam para o reconhecimento ou a proscrição das múltiplas vozes presentes em cada sociedade.

MULTICULTURALIDADE/S

Na América Latina, o que se chama de pluralismo ou heterogeneidade cultural é entendido como parte da nação enquanto que nos Estados Unidos, significa separatismo. No que convém segundo  Peter McLaren, distinguir entre um multiculturalismo conservador em que o separatismo entre as etnias se acha subordinado à hegemonia dos wasp's ( White Anglo-Saxon Protestants ) que estipula o que se deve ler e aprender para ser culturalmente correto; um multiculturalismo liberal que postula a igualdade natural e a equivalência cognitiva entre raças e um multiculturalismo liberal de esquerda que explica as violações da igualdade pelo acesso desigual aos bens.

Pensadores como Michael Walzer expressam que "o conflito agudo na vida norte-americana não opõe o multiculturalismo a alguma hegemonia ou singularidade", a "uma identidade norte-americana vigorosa e independente", mas "a multidão de grupos à multidão de indivíduos". "Todas as vozes são fortes, as entonações são variadas e o resultado não é uma música harmoniosa - contrariamente à antiga imagem do pluralismo como sinfonia na qual cada grupo toca sua parte (mas, quem escreveu a música?) - e sim uma cacofonia".

No caso das sociedades latino americanas que não se formaram com o modelo das pertenças étnico comunitárias, mas, a partir da idéia leiga de república e do individualismo jacobino e com a interação com a multiculturalidade latino-americana, não predomina nos países a tendência a resolver os conflitos multiculturais mediante políticas de ação afirmativa.

INTRODUÇÃO

Este livro tenta entender como as mudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e as formas de exercer a cidadania que sempre estiveram associadas à capacidade de apropriação de bens de consumo e à maneira de usá-los com diferenças que eram compensadas pela igualdade em direitos abstratos concretizados no voto, ao sentir-se representado pelo partido ou sindicato.

Junto com a degradação da política e a descrença em suas instituições, outros modos de participação se fortalecem. Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos - a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar, quem representa meus interesses - recebem sua resposta mais através do consumo privado de bens e dos meios de comunicação deda massa do que pelas regras abstratas democracia ou pela participação coletiva em espaços públicos.

O próprio e o alheio: uma oposição que se desfigura

No séc. XX em um conflito entre pais e filhos sobre o que a família podia comprar, os pais terminavam dizendo: "ninguém está satisfeito com o que tem", respondendo aos filhos que chegavam à educação de nível médio ou superior como novas demandas. Respondiam assim à proliferação de aparelhos eletrodomésticos, aos novos signos de prestígio, às inovações da arte e da sensibilidade...

As lutas de gerações a respeito do necessário e do desejável mostram outro modo de estabelecer as identidades e construir a nossa diferença, nos afastando da época em que as identidades se definiam por essências a-históricas: atualmente configuram-se no consumo.

As transformações constantes nas tecnologias de produção, no design de objetos, na comunicação mais extensiva ou intensiva entre sociedades - e o que isto gera em relação à ampliação de desejos e expectativas - tornam instáveis as identidades fixadas em repertórios de bens exclusivos de  uma comunidade étnica ou nacional.

Essa versão política de estar contente como o que se tem, (nacionalismo 1960/70), é vista hoje como o último esforço das elites desenvolvimentistas, das classes médias e de alguns movimentos populares para conter dentro das vacilantes fronteiras nacionais a explosão globalizada das identidades e dos bens de consumo que as diferenciavam.

Os objetos perdem a relação de fidelidade com os territórios originários. A cultura é um processo de montagem multinacional, uma articulação flexível, de partes, uma colagem de traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar.

Qual a dúvida cabível?

A globalização é uma tendência irreversível mas há dois movimentos atuais de suspeita: os que não crêem que o global se apresente como substituto do local, e o dos que não acreditam que o modo neoliberal de nos globalizarmos seja o único possível.

Muitas diferenças persistem com a transnacionalização, e o modo como o mercado reorganiza a produção e o consumo para obter maiores lucros e concentrá-los converte essas diferenças em desigualdades.

Que outras perspectivas existem hoje? Há poucos anos pensava-se no olhar político como uma alternativa, mas o mercado desacreditou esta atividade, exibindo-se como mais eficaz para organizar as sociedades, submetendo a política às regras do comércio e da publicidade, do espetáculo e da corrupção. É necessário então, dirigir-se ao que na política é relação social: o exercício da cidadania.

Para vincular o consumo com a cidadania é preciso desconstruir as concepção que julgam os comportamentos dos consumidores como irracionais e as que vêem os cidadãos atuando em função da racionalidade dos princípios ideológicos. Ou seja, partiremos da hipótese de que ao selecionarmos os bens e nos apropriarmos deles, definimos seu valor público, os modos de integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, e combinarmos o pragmático e o aprazível.

Os estudos sobre cidadania cultural nos estados unidos não têm a ver apenas como os direitos reconhecidos pelos aparelhos estatais, mas com as práticas sociais e culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem se sintam diferentes os que possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação das necessidades.

Na América Latina os movimentos sociais estão redefinindo o que se entende por cidadão em relação aos direitos de igualdade e à diferença. A cidadania indica a luta pelo reconhecimento dos outros como sujeitos de "interesses válidos, valores pertinentes e demandas legítimas".

Repensar a cidadania como "estratégia política" serve para abranger as práticas emergentes não consagradas pela ordem jurídica, o papel das subjetividades na renovação da sociedade, e, ao mesmo tempo, para entender o lugar relativo destas práticas dentro da ordem democrática e procurar novas formas de legitimidade estruturadas de maneira duradoura em outro tipo de Estado.

Ao repensar a cidadania em conexão com o consumo e estratégia política, coloco a discussão com a insatisfação com o jurídio-político que conduz a uma defesa da existência de uma cidadania cultural, cidadania racial, de gênero e ecológica com o mercado estabelecendo um regime convergente para essas formas de participação através da ordem do consumo.

O crescimento vertiginoso das tecnologias audiovisuais de comunicação, tornou patente o desenvolvimento do público e o exercício da cidadania, meios eletrônicos esses que fizeram irromper as massas populares na esfera pública deslocando o desempenho da cidadania em direção às práticas de consumo.

Desiludidos com as burocracias estatais, partidárias e sindicais, o público recorre ao rádio e à televisão para conseguir o que as instituições cidadãs não proporcionam: serviços, justiça, reparações ou simples atenção.

O novo cenário sociocultural

As mudanças socioculturais são divididas em cinco processos: a) redimensionamento das instituições e dos circuitos de exercício do público: perda de peso dos órgãos locais e nacionais em benefício dos conglomerados empresariais de alcance transnacional; b)reformulação dos padrões de assentamento e convivência urbanos: do bairro aos condomínios, das interações nas grandes cidades, onde trabalhar, estudar... se realiza longe da residência; c) reelaboração do próprio; d) redefinição do senso de pertencimento e identidade, organizado cada vez mais por lealdades transnacionais ou desterritorializadas de consumidores ( CNN, MTV...); e) a passagem do cidadão que representa uma opinião pública para aquele interessado em desfrutar certa qualidade de vida.

A novidade na segunda metade do século XX é que estas modalidades audiovisuais e massivas de organização da cultura foram subordinadas aos critérios empresariais de lucro e a um ordenamento global que desterritorializa conteúdos e formas de consumo. Podemos assim, dizer que saímos do século XXI como consumidores e cidadãos do século XVIII.

Por que este acesso simultâneo aos bens materiais e simbólicos não vem acompanhado de um exercício global e pleno de cidadania?

A reinvenção das políticas

Se reconhecemos o deslocamento dos cenários em que se exerce a cidadania ( do povo à sociedade civil ) e a reestruturação do peso do local, do nacional e do global, algo terá de acontecer à forma pela qual as políticas representavam as identidades. Outro modo cultural de fazer política e outros tipos de políticas culturais deverão surgir.

As identidades modernas eram territoriais e quase sempre monolinguísticas. Consolidaram-se subordinando regiões e etnias dentro de um espaço chamado nação. As identidades pós-modernas são transterritoriais, multilinguísticas, estruturam-se mais pela lógica do mercado e operam por meio da produção industrial de cultura, de sua comunicação tecnológica e do consumo diferido e segmentado dos bens.

Que cidadania pode expressar esse novo tipo de identidade? Em contraste com a noção jurídica de cidadania, desenvolvem-se formas heterogêneas de pertencimento, cujas redes se entrelaçam com as do consumo: "um espaço de lutas, um terreno de memórias diferentes e um encontro de vozes desiguais".

No caso das grandes cidades em que os centros históricos perdem peso, as populações se disseminan: os jovens encontram núcleos organizadores, "margens que se inventam para si". A identidadepassa a ser concebida como "o foco de um repertório fragmentado de minipapéis mais do que como o núcleo de uma hipotética interioridade" contida e definida pela família, pelo bairro, pela cidade, pela nação ou por qualquer um desses enquadramentos em declínio.

O CONSUMO SERVE PARA PENSAR

Hoje vemos os processos de consumo como algo mais complexo do que uma relação entre meios manipuladores e dóceis audiências. O consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos.

Segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais ( pesquisas de mercado ), o consumo é compreendido pela sua racionalidade econômica e para as diversas correntes de estudo, o consumo é um momento do ciclo de produção e reprodução social.

Os estudos marxistas sobre o consumo e a primeira etapa da comunicação de massa ( 1950 a 1970 ) superestimaram a capacidade de determinação das empresas em relação aos usuários e às audiências. Para algumas correntes da antropologia e da sociologia urbana, o consumo se manifesta uma racionalidade sociopolítica interativa.

Para Manuel Castells, o consumo "é um lugar onde os conflitos entre classes, originados pela desigual participação na estrutura produtiva, ganham continuidade em relação à distribuição e à apropriação dos bens".

Percebe-se a importância política do consumo quando políticos que detiveram a inflação na Argentina, no Brasil e no México centrarem sua estratégia de consumo na ameaça de que uma mudança de orientação econômica afetaria aqueles que se endividaram comprando a prazo. " Se não querem que a inflação volte devem votar em mim novamente" ( Carlos Menem ) ao tentar a reeleição à presidência da Argentina.

Um outro segmento dos estudos, chama atenção para o consumo enquanto lugar de diferenciação e distinção entre as classes e os grupos, evidenciando os aspectos simbólicos e estéticos da racionalidade consumidora. Existindo uma lógica na construção dos signos de status e nas maneiras de comunicá-los.

Há uma racionalidade pós-moderna?

Algumas correntes do pensamento pós-moderno têm chamado a atenção em um direção oposta a nossa -  sobre a disseminação do sentido, a dispersão dos signos e a dificuldade de estabelecer códigos estáveis e compartilhados. Para esses autores, os cenários do consumo são invocados como lugares onde se manifesta com maior evidência a crise da racionalidade moderna. ( Lyotard )

Para Mary Douglas e Baron Isherwood, por meio dos rituais, os grupos selecionam e fixam - graças a acordos coletivos - os significados que regulam a sua vida. Os rituais utilizam objetos materiais para estabelecer o sentido e as práticas que os preservam. Por isso definem muitos dos bens que são consumidos como "acessórios rituais", e vêem o consumo como um processo ritual.

Além de serem úteis à expansão do mercado e para reprodução da força de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com eles, "as mercadorias servem para pensar", ordenar politicamente cada sociedade

Segundo Appadurai em sociedades modernas o consumo não é algo privado, atomizado e passivo, mas sim, eminentemente social, correlativo e ativo, subordinado a um certo controle político das elites.

Comunidades transnacionais de consumidores

Vivemos um tempo de fraturas e heterogeneidade, de segmentações dentro de cada nação e de comunicações fluidas com as ordens transnacionais da informação, da moda e do saber. Em meio a tudo isso, alguns códigos nos unificam, mas esses códigos são cada vez menos os da etnia, da classe ou da nação em que nascemos.

O que ocorre é que a reorganização transnacional dos sistemas simbólicos, feita sob as regras neoliberais de máxima rentabilidade dos bens de massa, gerando a concentração da cultura que confere a capacidade de decisão em elites selecionadas, exclui as maiorias das correntes mais criativas da cultura contemporânea.

Se o consumo é um lugar difícil de pensar, é pela liberação do seu cenário ao jogo pretensamente livre, ou seja, feroz das forças de mercado. Para articular o consumo com um exercício refletido da cidadania, é necessário reunir alguns requisitos: a) oferta vasta e diversificada de bens e mensagens representativas da variedade internacional dos mercados, de acesso fácil e equitativo para a maiorias; b) informação multidirecional e confiável a respeito da qualidade dos produtos com o controle feito pelos consumidores dando-lhes capacidade de refutar as seduções das propagandas; c) participação democrática dos principais setores da sociedade civil nas decisões de ordem material, simbólica, jurídica e política em que se organizam os consumos: desde o controle de qualidade dos alimentos até as concessões de rádio e televisão.

Estas ações políticas pelas quais os consumidores ascendem à condição de cidadãos, implicam uma concepção do mercado não como simples lugar de troca de mercadorias, mas como parte de interações socioculturais mais complexas.

Portanto, vincular o consumo com a cidadania requer ensaiar um reposicionamento do mercado na sociedade, tentar a reconquista imaginativa dos espaços públicos, do interesse pelo público.


CANCLINI, Néstor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização; trad. Maurício Santana Dias. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.