quarta-feira, 20 de março de 2019

Do direito à cidade ao fazer- cidade: o antropólogo, a margem e o centro

Favela, bairro de São Paulo, Brasil. Foto: freeimagens

Por Raissa Freitas

Para introduzir uma reflexão em que a cidade é tomada como objeto de um constante fazer antropológico, Michel Agier[1] (2015) ao iniciar sua reflexão chama atenção para uma perspectiva metodológica que busca descrever a dinâmica entre “etnografia das margens” e “antropologia da cidade”. Assim, sem a pretensão de reproduzir uma oposição radical ou mesmo “ontológica” entre essas concepções, muitas vezes presentes nos manuscritos antropológicos, o objetivo do autor é o de implementar um método que permita pensar a universalidade da cidade fora de qualquer pretensão normativa. Neste sentido, Agier (2015) reforça ainda que para o desenvolvimento de uma pesquisa etnográfica urbana é necessário um movimento constante de construção e desconstrução, evitando qualquer definição a priori para que a cidade seja assim apreendida enquanto uma ferramenta analítica antropológica.


Ao questionar sobre o que faz e desfaz uma cidade permanentemente, Agier (2015) busca nas premissas de Henri Lefebvre o significado social de uma “virtualidade” descrita em seus manuscritos que impulsionou o desenvolvimento de novos estudos na década de 60. Mais recente lembra que o geógrafo David Harvey, ao retomar tais premissas, conferiu a virtualidade um “significante vazio” relativo a quem lhe dá sentido, daí a mola propulsora de uma apreensão etnográfica em que o “fazer cidade” é entendido pelo autor enquanto movimento feito pelos citadinos. Nesta perspectiva, a fronteira na qual ganha sentido os processos identitários é o quadro privilegiado para se observar e compreender a existência das coisas na cidade que segundo o autor são difíceis de definir como essencialmente urbanas.


Para concluir, Agier (2015) traz três exemplos de pesquisas etnográficas realizadas na África e na América Latina em que o “fazer cidade” foi utilizado como método etnográfico para descrição de grupos. No primeiro caso o interesse é a fundação da cidade desde as chamadas “margens urbanas”. Essa perspectiva envolveu os bairros populares ou as ditas “invasões”, bem como os estabelecimentos provisórios de migrantes e os campos de refugiados. Para o autor esses grupos são considerados citadinos que aparecem nesses lugares nascidos como refúgios, abrigos ou esconderijos no coração da Europa. A partir da matéria-prima disponível ou residual de produtos manufaturados, esses grupos desenvolvem uma arquitetura das favelas ou dos chamados bidonvilles. Neste sentido, a abordagem adotada aqui foi a de uma etnografia urbana dos acampamentos em que Agier (2015) procurou dar conta para além das criações sociais ou das mudanças culturais das novas formas políticas que apareceram nesses acampamentos.


Com o crescimento proporcional das urbanizações consideradas informais nesses países Agier (2015) notou ainda que os termos bidonville, slum ou favela ressoavam no plano político e midiático trazendo uma visibilidade a esses processos, porém, por serem inoperantes no plano do conhecimento antropológico, o autor se propôs observar e descrevê-los ao invés de se deixar levar pelos termos que os definiam. Neste sentido, a favela é encarada no segundo exemplo como uma modalidade de cidade entendida enquanto movimento onde existe uma negociação para sua existência.       


Para finalizar, no terceiro caso, Agier (2015) nos mostra como o agir humano movido pelo desejo foi entendido como essencial para a concepção da cidade como uma construção permanente. Assim, uma de suas declinações é o deslocamento observado como movimento em direção ao centro que perpassa as periferias e os subúrbios enquanto uma conquista espacial. Segundo o autor, os debates recentes que envolvem as questões das lutas urbanas ganhariam força se pensássemos a cidade a partir de espaços precários da margem.


AGIER, Michel. Do direito à cidade ao fazer- cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana. 483-498, 2015.



[1] Antropólogo, diretor de estudos na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) e pesquisador no Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD).

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