terça-feira, 17 de setembro de 2019

Resenha do texto "Enclaves Fortificados: A Nova Segregação Urbana", de Teresa Caldeira

Favela de Paraisópolis/zona sul de São Paulo – Foto: Tuca Vieira

Por Élida Braga

Os espaços urbanos, atualmente, são formados por um misto de tensão, separação, tendo no medo e fragmentação as demarcações da vida na cidade. As questões apresentadas neste texto podem ser vistas em maior profundidade no livro de Teresa Caldeira “Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo”, o qual permanece atualíssimo 19 anos depois de sua publicação. Ao tratar da violência urbana e da criminalidade pelo viés do espaço urbano, nos leva a refletir sobre essa estrutura social que se alimenta e retroalimenta diversos nichos da sociedade em suas relações imbricadas de poder.

No livro, entre narrativas sobre o crime e criminosos, a autora nos mostra, na primeira parte da obra, situações nas quais se fortalecem os estereótipos das diferenças, os quais classificam pessoas e lugares. Depois, ela aponta para a instituição policial até chegar no que chamou de enclaves fortificados, para os quais voltamos nossa atenção a partir de agora. Na terceira parte do livro, “Segregação urbana, enclaves fortificados e espaço público”, Teresa Caldeira reconhece nas “regras que organizam o espaço urbano [...], basicamente como padrões de diferenciação social e de separação” (p. 211).  Desse modo, os enclaves são

propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas de segurança, que impõem regras de inclusão e exclusão" (CALDEIRA, 2000, p. 258).

O presente texto nos coloca frente a uma modificação drástica do espaço público e da participação na vida pública, a partir de configurações que mudam e de muros que se erguem (no início do século, em São Paulo, vários grupos sociais viviam próximos uns dos outros, mesmo que em configurações radicalmente diferentes). Da década de 90 para cá, os mecanismos de separação tornaram-se mais óbvios e complexos.

Outra questão que aparece bem marcada no texto é o processo de empobrecimento decorrente da década de 1980, compreendido em quatro processos de mudanças, nos quais se assume um novo padrão de segregação espacial. São eles: a crise econômica (recessão, inflação alta, desemprego e aumento da pobreza);  abertura e consolidação democrática (eleições livres) com a promoção da legalização dos loteamentos clandestinos, mas também a diminuição de lotes baratos, tornando inacessível à população já empobrecida, empurrando-os para favelas e cortiços; a reestruturação de São Paulo no sentido de processo de terceirização e serviços especializados; mudanças nas áreas centrais da cidade (processos combinados de deterioração e gentrification ), ao tempo que construíram shopping centers, condomínios fechados, etc.; e o crescimento do crime violento e do medo como retórica de justificação; adoção de novas estratégias de proteção, afetando os padrões de residência, circulação e trajetórias cotidianas (CALDEIRA, 1997).

De acordo com Caldeira (1997), São Paulo é hoje uma cidade de muros. Uma estética de segurança modela todos os tipos de construção, impondo uma lógica de vigilância e distância como forma de status, mudando o caráter das interações públicas (muros, grades, equipamentos eletrônicos de vigilância e guardas privados armados). Os enclaves fortificados para moradia, trabalho e consumo das classes médias e altas provocam profundas mudanças no cenário social. Os enclaves fortificados mantêm as seguintes características: são propriedades privadas para uso coletivo fisicamente isolados; estão voltados para dentro e não para a rua; são controlados por guardas armados e sistema de segurança privada, pondo as regras de admissão e exclusão em prática; não dependem de um centro urbano com alta densidade.

A publicidade em torno dos enclaves enfatiza a constituição dos padrões de diferenciação social vigentes na sociedade como elementos valorativos no sentido de “quanto mais afastado e seguro, melhores condições de vida”, de “viver apenas entre os iguais”, em uma “convivência sem inconveniência”, ou seja, em regime fechado. A proposta de marketing aponta para um ambiente seguro, oposto ao mundo deteriorado da cidade, permeado por poluição e barulho, confusão e mistura, ou seja, heterogeneidade social e encontros indesejáveis. Desse modo, os condomínios fechados são imaginados e vendidos como um mundo à parte. Logo, isolamento, separação daqueles que são considerados socialmente inferiores (exclusão dos indesejáveis) e, mais ainda, o fator principal que prepondera nos anúncios de vendas é a segurança. “segurança total é crucial para o novo conceito de moradia” (CALDEIRA, 1997, p. 162).

Há, ainda, a amplitude do conceito de segurança, no sentido de serviços domésticos controlados, com mecanismos de controle diversificados, oferecendo um controle completo a fim de erradicar a heterogeneidade social. Diante disso, a autora nos informa o surgimento de novas formas de organizar diferenças sociais e criar segregação em São Paulo, através de barreiras físicas com grades e muros e grandes espaços vazios  que desencorajam aproximação de pedestres; de sistemas de segurança, controle e vigilância; de universos voltados para dentro; na pretensão de serem mundos independentes. Assim estabelecem a relação de evitação com o resto da cidade (CALDEIRA, 1997).

Contudo, os enclaves privados e a segregação que eles produzem negam muitos dos elementos básicos que constituem a experiência moderna da vida pública: a primazia das ruas e sua abertura; a circulação livre de multidões e veículos; os encontros impessoais e anônimos entre pedestres; o lazer e os encontros públicos em ruas e praças; e, sobretudo, a presença de pessoas de diferentes origens sociais circulando e observando os que passam, olhando as vitrines, fazendo compras, frequentando cafés ou bares, tomando parte em manifestações políticas ou usando os espaços que foram, durante muito tempo, desenhados especialmente para o entretenimento das massas, tais como passeios públicos, parques, estádios, pavilhões de exposições (CALDEIRA, 1997).
Caldeira (1997) traz ainda uma comparação entre os enclaves das cidades de São Paulo, Los Angeles e Brasília. A desigualdade sempre esteve presente, no entanto os níveis de desigualdades experimentados em Los Angeles, por exemplo, são bem menores que em São Paulo. Desse modo, nesta tende a ser muito mais sentida.

De outro modo, percebe-se, por exemplo, em Brasília, ruas só para tráfego de veículos, ao invés de ruas-corredor, atacando as ruas com uma remodelação radical do espaço. Então, observa-se conceitos modernistas que orientaram a construção de Brasília foram e são tomados como instrumentos para criar e manter separações sociais, alargando alguns âmbitos privados para que cumpram funções públicas, mas de maneira segregada. Desse modo, a circulação de pedestre é desencorajada e as novas áreas de comércio são mantidas longe das ruas (CALDEIRA, 1997).

Desse modo, o estilo dos enclaves ressalta a internalização, a privacidade e a individualidade. Os elementos arquitetônicos e modernistas mantidos são aqueles que destroem o espaço público e a vida social. “Os enclaves utilizam convenções modernistas para criar es paços nos quais a qualidade privada é visivelmente reforçada e o público, um vazio sem forma tratado como resíduo, considerado irrelevante” (CALDEIRA, 1997, p. 168). O resultado da arquitetura modernista e do “espaço totalmente público” em Brasília e tem como resultado a perversão das premissas iniciais, ou seja, se apropriam das características modernista que favorecem e descarta as que fazem alusão ao espaço público e a vida social.

Logo, a autora define o objetivo dos enclaves que é “segregar e mudar o caráter da vida pública, trazendo para os espaços privados, construídos como ambientes socialmente homogêneos (e portanto excludentes), as atividades que anteriormente tinham lugar em espaços públicos (heterogêneos e em princípio não-excludentes)” (CALDEIRA, 1997, p. 168). O espaço público vai progressivamente abandonado àqueles que não tem chance de viver, trabalhar e consumir enclaves privados, internalizados e fortificados e as formas de segregação social aparecem com mais força para o que resta do espaço público. E os espaços que se constroem como público são marcados por seletividade e separação (a exemplo dos shoppings centers).

Assim, a segregação urbana contemporânea é complementar à questão da violência urbana. Morar em cidades segregadas por enclaves e marcadas pelo medo do crime é o que ao mesmo tempo diminui o contato entre pessoas de grupos diferentes, sendo que as diferenças sociais são percebidas com maior rigidez.

Diante do exposto, este texto apresenta elementos-chave para a compreensão das questões que envolve violência urbana. A tentativa de Caldeira é um primeiro passo, no qual se obtém pistas para avançar. Uma investigação sobre as práticas de segregação e de homogeneização da vida cotidiana nos leva a observar uma fluidez de significados muito maior do que aquela apresentada pelos discursos dos sujeitos envolvidos. Além disso, podemos observar questões que se entrecruzam com as que foram apresentadas, mais especificamente como essa parcela da população que é estigmatizada como indesejável vai se tornando cada vez mais descartável a partir dessas configurações apresentadas. São, portanto, peças que se encaixam e nos guiam ao encontro de outras a fim de montarmos esse grande quebra-cabeça social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALDEIRA, Teresa P. do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000, 399 pp.

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